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segunda-feira, 23 de maio de 2022

DENTRO DO NEVOEIRO

 


Não sei se existe alguém no mundo que gosta de lavar a louça. Talvez os nascidos no signo de virgem, que são pessoas certinhas, adoradores da ordem e da limpeza. Como nasci na outra ponta do zodíaco, meu entendimento da questão é diferente. Penso que essa tarefa pode e deve ser adiada o máximo possível – possivelmente para quando não mais existirem pratos e copos limpos.

Depois do Covid-19 a minha percepção da situação não mudou, mas tenho exercido o sacrifício com mais assiduidade, no mínimo uma vez a cada dois dias, o suficiente para não ter a necessidade de desviar o olhar toda vez que entro na cozinha. Poderia culpar minha mãe, que, na infância e adolescência, não me avisou que o futuro estaria repleto de surpresas e que, muitas vezes, precisaria (munido de esponja, detergente e paciência) tentar limpar os detritos do viver. Não quero transferir responsabilidade. Seria uma injustiça com D. Vina, visto que recebi outras lições, talvez mais valiosas, sobre como sobreviver em um mundo hostil e repleto de armadilhas.

No ano um da pandemia (também conhecido como o ano em que ficamos em casa), precisei ser mais pragmático. E isso me fez perceber que lavar a louça se aproxima da filosofia. Olhar para as mãos molhadas é uma forma de entender que a vida está pulsando. Escolher entre o detergente e o sabão de coco influencia as ações diárias. Um garfo ou uma colher pode remeter o pensamento para lugares outros, longe da filosofia da miséria e, claro, da miséria da filosofia   essa moldura dos dias tumultuados pelas ameaças da indesejada das gentes (na expressão lírica do Manuel Bandeira, que provavelmente nunca reclamou de ter que lavar a louça). Além disso, há o medo de me transformar em simulacro de quinta categoria do Rodrigo Hilbert – esse exemplo do homem desconstruído pelas novidades da modernidade. É uma possibilidade remota, convenhamos. Além de me faltar múltiplas habilidades nas tarefas do dia a dia, ninguém consegue competir com o cara – em diversos níveis.

O calor do corpo contrasta com o vidro e a porcelana de copos e pratos. O tempo e o espaço são engolidos por um vórtice difícil de definir. Um pouco d’água quente ajuda muito para diminuir a consistência e a espessura dos fantasmas que surgem a cada instante.

Ao segurar um prato, há o risco dele escapar das mãos e – no chão – se espatifar em mil pedaços. Um desastre que anuncia a transitoriedade. Ou o fim do mundo. Que no es lo mismo / pero es igual, como cantou um dos muitos menestréis de América Latina.

Ninguém lava a louça duas vezes na água que escorre pela torneira. Imagens e pensamentos aparecem e somem na medida em que o trabalho vai sendo realizado. Na ação mecânica (lavar, enxugar, guardar no armário) está embutida a sensação de que tudo é passageiro. A espuma que encobre o prato (que em algum momento esteve sujo) sinaliza essa mudança.

Diante das urgências do agora, talvez seja sensato viver cada dia como se fosse o último. Sem pressa, sem se ater aos interesses daqueles que querem comprar e vender mercadorias como se fossem artigos necessários para garantir a felicidade. A ilusão não pode ser uma proposição existencial, mas também não pode impedir a utopia. 

Terminada a tarefa, os pratos, os copos e os talheres limpos, restam fiapos do pensamento, fragmentos da busca intelectual, e a certeza de que o caos do mundo jamais será domesticado. O nevoeiro se dispersa, mas – como uma brasa dormida – não desaparece.

Amanhã é outro dia. Por isso se torna necessário superar o medo e, ao mesmo tempo, ignorar a sensação de que – lentamente – a vida está escorrendo pelo ralo da pia. 

 

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