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sexta-feira, 13 de maio de 2022

PERDER OS ÓCULOS É PERDER PARTE DO MUNDO

 


Perder os óculos é uma tragédia. Tudo fica opaco – um conjunto de sombras, sobras daquilo que, em tempo anterior, era cor e vida. A beleza do mundo e a emoção que é olhar (o perto e o longe) se diluem na névoa. Claro que isso não é o fim do mundo. Talvez seja o começo de outra catástrofe.

No final da tarde, a garoa ameaçando se transformar em temporal, ele apressou o passo – queria chegar ao apartamento o mais rápido possível. A gripe costuma acompanhar a chuva e, em tempos pandêmicos, todo cuidado é pouco.

No momento em que estava prestes a desfrutar da segurança que é estar em casa notou que alguma estava em falta. O quê? Levou a mão ao rosto, ao bolso da camisa. Procurou na pasta que sempre o acompanha. Desesperou-se. Onde será que estavam os óculos? Procurou por todos os lugares onde poderia procurar. Na cozinha, no escritório, próximo do telefone fixo, no banheiro. Não o encontrou. Tinha desaparecido.

Fez um exercício de memória em relação aos lugares em que esteve antes de chegar ao prédio. Será que tinha deixado no banco, onde fora pagar um daqueles boletos que não cansam de chegar todos os meses? Imediatamente, por analogia, se lembrou das várias vezes que esqueceu o cartão de crédito no caixa eletrônico e teve que retornar correndo, desejando que o objeto ainda estivesse no lugar onde foi abandonado. Nenhuma novidade na vida de um perdedor. Quer dizer, perder coisas é uma de suas especialidades. São incontáveis os livros, as chaves, as canetas, e outros utensílios que ficaram pelo caminho e que nunca foram recuperados. Incorrigível paspalho – foi o que disse para si mesmo.

Outra possibilidade era a de que o tivesse perdido em algum lugar durante o caminhar. Bastaria um gesto brusco e os óculos poderiam ter deslizado suavemente para fora de seu alcance. As calçadas possuem esse tipo de atração. Sim, isso poderia ter acontecido. No desespero, munido do guarda-chuva, refez parte do trajeto por onde poderia ter acontecido a separação. Olhando cuidadosamente para o chão nada encontrou.  

Consciente que precisaria tomar uma série de providências no dia seguinte anotou o número do telefone da clínica oftalmológica. Teria que marcar uma consulta. Depois, precisaria mandar aviar a receita das lentes e da armação– nitidamente em desacordo com o seu saldo bancário. Teria que parcelar os gastos astronômicos em intermináveis parcelas.

Nas primeiras horas da manhã seguinte, estoicamente, decidiu seguir em frente – como se a perda significasse apenas um pequeno contratempo. Um sinal de que não é possível ter controle sobre certas situações.

Um pouco antes de sair para o trabalho, ele pegou a bolsa, que estava em cima do sofá. Nesse momento, os óculos caíram no chão. Perplexo, ele recolheu o objeto e agradeceu aos deuses do Olimpo, além de Buda, Ganesha, São Longuinho (apesar de não ter feito os tradicionais três pulinhos).

Ter encontrado os óculos é um mistério que ele nunca conseguirá resolver. Em cima do sofá foi um dos lugares onde procurou – diversas vezes. Não poderia estar lá. Não poderia. Mas, estava. Algumas pessoas possuem mais sorte do que juízo.

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