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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

O CÉU DE LIMA

 


Lima, 1904. Os amigos Carlos e José, por imposição familiar, estão matriculados no curso de direito da Universidade San Marcos. Mas raramente frequentam as aulas. O que desejam da vida é ser aclamados como bons poetas. No entanto, falta-lhes talento. As musas parecem ignorar a existência desses dois pobres rapazes ricos. Então, enquanto a inspiração não aparece, eles gastam o tempo e o dinheiro dos pais com pisco, partidas de bilhar, ópio, prostíbulos e conversas sobre literatura.

Um dia, à beira do tédio, resolvem escrever ao Juan Ramón Jiménez (1881-1958. Prêmio Nobel de Literatura em 1956). Querem uma cópia de um dos livros do poeta espanhol e que não está disponível nas livrarias da capital peruana. Depois de deliberarem sobre o assunto, tomam uma decisão peculiar: as cartas terão a voz de uma personagem feminina, Georgina.

Com o desenrolar dos acontecimentos e a troca de epistolas – que demoram uma eternidade, pois dependem do transporte marítimo –, a linguagem vai se modificando, adquirindo substância, alguns segredos são trocados, sutilmente instala-se um clima de sedução. O poeta espanhol começa a imaginar a possibilidade de navegar por dois oceanos e conhecer a sua correspondente. Evidentemente, diante dessa ameaça, para evitar que o vexame se instale, uma providência enérgica se faz necessária.  

Carlos (que muitas vezes se mostrou submisso às vontades do amigo) se impõe dizendo que é preciso matar os amigos imaginários. Nada mais resta aos dois senão dar o passo necessário para ingressar na vida adulta. A fantasia se desfez, acabou o brinquedo. Não existe mais espaço para a poesia e os sonhos da juventude. Simultaneamente, a amizade perde o sentido, o elo que existia entre os dois se rompe. O passado é apenas um conjunto de lembranças que vai se desfazendo lentamente, como se fosse areia levada pelo vento.

Com o passar do tempo e a aquisição da maturidade, José e Carlos continuam se encontrando, mas apenas socialmente – casados, com filhos, administrando os negócios familiares, repetindo a uma vida que, de certa forma, imita a de seus pais.   

O Céu de Lima, romance escrito pelo espanhol Juan Gómes Bárcena (baseado em episódio retratado no livro Labirinto, de Juan Ramón Jiménez, publicado em 1913) é uma narrativa em que as questões psicológicas e sexuais estão à flor da pele (ou da página).

José Gálvez Barranechea se destaca (sem o mínimo escrúpulo) por sua posição social (descendente de heróis da história peruana), por suas conquistas amorosas, por ser um protótipo de macho alfa (aquele que manifesta, a todo instante, a posição dominante). Carlos Rodriguez, ao contrário, filho de novos ricos, costuma ser passivo, muitas vezes discutindo a masculinidade (na medida em que admite que seus relacionamentos com prostitutas beiram o superficial e se mostram incapazes de produzir o gozo). Parte desse proceder está relacionado com as muitas lutas que precisa superar: o preconceito (no colégio muito zombaram da sua caligrafia de mulher, com letras redondas e suaves como uma carícia), o bullying (frequentemente José o chama de Carlota) e a violência intrafamiliar (o medo paterno de que o filho seja homossexual). No mundo provinciano em que vivem a heteronormalidade não pode e nem deve ser transgredida. Não há espaço para a alteridade.

Contra todas as probabilidades, o curto-circuito se mostra inevitável. A masculinidade entra em colapso quando os rapazes (em um dos muitos encontros no sótão de um dos edifícios de propriedade do pai de Carlos) concordam em usar um nome feminino para a personagem que criam. A complementaridade não se dá no contato físico, mas através da fantasia de que Georgina é parte de cada um deles, os dois unidos pelo corpo da personagem. Nesse embaralhar dos gêneros sexuais, em que eles se travestem imaginariamente, os dois homens parecem dizer o que não diriam de outra maneira.

O desejo interdito costuma negar a sua natureza e a potência que o acompanha. Somente a ação externa (a possibilidade de estarem frente a frente com Juan Ramón Jiménez) fornece válvula de escape para o que estava se tornando uma situação sem retorno. Salvos (ou condenados) pelo gongo! 

  

Juan Ramón Jimenez (1881-1958)


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