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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

SOBRE O OFÍCIO

 


Nenhuma palavra encontrou caminho para formar um novo texto. O teclado do computador continua esperando por algum tema, coisa pouca, talvez uma história sobre o amor ou a guerra conjugal (que se não é mesma coisa, muito se aproxima), quiçá um pouco de humor sobre as trapalhadas que mostram as diferenças entre as vidas urbana e rural, talvez fornecer uma opinião sobre a situação catastrófica dos indígenas da tribo Yanomani ou comentar as mais recentes monstruosidades cometidas por alguns jogadores de futebol; em momento de desespero poderia cometer a homenagem a alguém ilustre. A sensação angustiante de ter muitas coisas a dizer e nenhuma parecer suficiente para cumprir com a obrigação constitui um dos grandes problemas a ser superado por quem (escritor, jornalista, redator) precisa viver do que escreve.

Uma das lendas gregas mais impressionantes se refere ao Sísifo, um sujeito que foi condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o cume de uma montanha. Toda vez que ele estava prestes a atingir o objetivo, a pedra rolava montanha abaixo e ele precisava recomeçar a tarefa. Escrever se aproxima desse castigo.

Cada texto precisa ser revisado a todo instante, a constante sensação de que falta ou está sobrando alguma coisa paira no ar, a ideia inicial raramente se completa, perder o fio da meada costuma ser a regra, enveredar pelo desconhecido e descobrir, depois de algumas horas de esforço, que não há alternativa senão reiniciar o trabalho – todo o esforço foi em vão. Não bastasse essa aflição, até chegar ao leitor o texto sofre mil adaptações, palavras são substituídas, informações são acrescentadas ou suprimidas, pontos de vista são alterados. Esse trabalho invisível garante a inteligibilidade do que será publicado. E desmistifica duas das principais versões sobre a facilidade de escrever.

A primeira, e mais simples, refere-se ao fato de que não se deve confundir alfabetização com técnica narrativa.  Saber ler e escrever, além de construir uma frase ou duas, não significa que haja domínio da escrita (embora os cursos de redação criativa digam o contrário). A segunda, fruto do misticismo, confunde trabalho com genialidade. Inspiração, dom e bênção divina não existem. O texto surge em consequência do esforço, do suor, muitas vezes de horas em que a mente está trabalhando para transformar uma ideia em algo que supera o imaginário e se concretiza no papel ou na tela do computador. Acreditar em algo contrário significa apenas falta de entendimento sobre como a escrita funciona.

Um terceiro item (e que costuma ser esquecido) refere-se à intimidade com as palavras – mais do que necessário, o uso competente do vocabulário possibilita a transmissão do conhecimento, faz com que o leitor mantenha o interesse no que está sendo narrado. O que muitas pessoas esquecem é que ninguém consegue construir um texto sem ser um bom leitor.

No entanto, o conceito de leitor ultrapassa o significado mais óbvio – livros, jornais, redes sociais. Ler o mundo talvez seja mais importante. De nada adiante ter o domínio técnico e não saber utilizar essa qualidade na interpretação das coisas que acontecem ao seu redor. De forma complementar, necessário se faz entender o Outro, aquele que está ao lado – aquele que muitos costumam negar.

Escrever implica em estabelecer um compromisso político. Ou melhor, torna-se imprescindível deixar claro de que lado se está nas estruturas de poder. Sem esquecer que tudo o que é publicado, de uma forma ou de outra, modifica o leitor. Muitos interesses estão em jogo quando o texto se torna público – nem sempre são coisas boas. 

 

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