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sexta-feira, 12 de maio de 2023

A INEVITÁVEL FRAQUEZA DA CARNE

 



Dois temas são assíduos na literatura brasileira: os conflitos familiares (pai, mãe, irmãos) e o adultério. Nem mesmo Machado de Assis conseguiu escapar desses terrenos pantanosos. Usualmente, eles estão entrelaçados – em maior ou menor grau, dependendo da abordagem e do peso que o narrador atribuir a cada um deles.

O enredo de A inevitável fraqueza da carneprimeiro romance Wilson Gorj, editor da Penaluxnão apresenta grandes surpresas: pai ausente deixa um sítio como herança, esposa insensível quer gastar o dinheiro da venda do imóvel, a imaginação se solta quando o narrador encontra a filha jovem do caseiro. Forma-se o eterno triângulo amoroso (e pouco importa o aspecto platônico da situação).

Será que alguém nunca contou uma história parecida com essa? Ora, ora. Esse tipo de conversa é irrelevante. A literatura não deve perder tempo com enredos originais (se é que existem). A maneira de contar a história é que importa, é o que sempre importou. 

Utilizando um artifício interessante, uma narrativa dentro de outra narrativa, o narrador (que se esconde atrás de outro narrador) relata a história de Carlos – aquele que não possui aptidão para ser gauche na vida. Entremeada pela primeira e a terceira pessoa, a narrativa escorre pelas páginas do livro, embora aborde temas complexos. O estilo leve, que evita a abordagem direta das questões mais espinhosas, ajuda muito para que o texto não resulte em discurso panfletário.

Carlos leva uma vida sossegada como contador. Enquanto confere a correção das colunas de débitos e créditos, ele se esforça para engravidar a esposa. O legado econômico que recebe introduz algum movimento nessa pasmaceira. Depois de viajar várias vezes para o interior e conhecer outras pessoas, Carlos percebe que muitas coisas não podem ser avaliadas como se fossem certezas. Por exemplo, a imagem da figura paterna sofre algumas mudanças, não o suficiente para atenuar a separação, embora contribua para diminuir o rancor.

Outra revelação surge quando abre o envelope com o resultado do exame laboratorial. Desaparece a possibilidade de ser pai, mas também destrói o seu casamento. Esse curto-circuito emocional causa danos irreversíveis – e que se completam em outro esclarecimento, igualmente traumático, transcrito na carta que a madrasta lhe entrega, ao se despedir, depois de breve visita.

Em ritmo de alegoria, no meio da noite, desamparado, sem ilusões, Carlos encontra no olhar da jaguatirica (que ronda o galinheiro do sítio) uma espécie não verbal de cumplicidade. A solidão atinge o homem e o animal com a mesma intensidade. Ao mesmo tempo, induz a percepção de que a existência estabelece formas particulares de lamber as próprias feridas. Tentar sobreviver no mundo que, por diversos motivos, perdeu a objetividade significa entender que segredos e traições não podem ser empilhados em uma planilha contábil.

Talvez a carne (nos seus diversos sentidos) seja um estorvo, ao fim de tudo o que sobra é apenas a pele secando ao sol.       

Da mesma forma, como se fosse um item de testamento, faz parte da travessia completar o texto que o amigo escreveu. É isso que o narrador secundário (aquele que aparece nas páginas iniciais e finais do livro) parece querer dizer.

 

TRECHOS ESCOLHIDOS

O facho da lanterna enquadrou um montículo de terra escavada perto da tela lateral. Projetei a lanterna para o muro do fundo e – bingo! – lá estava ela. A luz, como nas ocasiões anteriores, tinha o efeito de inibir os seus movimentos, deixando-a sem ação imediata: as patas dianteiras já tocavam o grosso galho que se projetava sobre o muro. Ela virou a cabeça um pouco para trás e deu para ver uma ave presa pelo pescoço entre suas mandíbulas; por certo, um pequeno frango cujo corpo se pôs a balançar assim que a jaguatirica saiu do seu torpor e, saltando sobre o galho, avançou para dentro da árvore engolida pela escuridão.

Julguei que fosse nosso último encontro e acenei um adeus em direção ao ponto em que ela sumiu.

(...)

– Suba de novo e olhe para o outro muro, onde antes ficava escorada a antiga pilha de telhas.

Obedeci. Passei a vista de novo e vi algo diferente: assemelhava-se a um pequeno tapete pregado no muro.

– Parece um capacho.

– Não, patrão. Force um pouco mais a vista. É outra coisa.

Minha visão já dava sinais de cansaço. Mais do que na hora de adotar os óculos fora da rotina do meu escritório.

Ciente disso, usei a mão como aba na testa, para bloquear a claridade do sol e ver melhor aquele falso tapete.

– Que filho da puta – exclamei, assim que me dei conta do que era aquilo.

Sim, lá estava a jaguatirica, ou melhor, o que restou dela: apenas sua pele pregada no muro pelas quatro patas.


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