A vida é transitória. Até
as sete vidas dos gatos têm prazo de validade. Foi isso, na falta de
argumento melhor, o que disse ao menino – quando ele me comunicou que a
eutanásia tinha sido autorizada. Gato deixou de existir. Nenhuma surpresa. Ele
estava doente. E o fim do sofrimento foi uma atitude humana – se é que é
possível usar essa expressão.
Gato entrou nas nossas vidas de
forma ardilosa. Escrevo nossas vidas ciente de que existe uma imprecisão
terminológica na frase, já faz bastante tempo que não pertenço à família. De
qualquer forma, o que gostaria de esclarecer é que também fui afetado pela
existência do gato.
O menino foi passar alguns dias
no litoral, durante as férias. Não lembro exatamente da data. O gato vivia por
lá, sem domicílio regular. Comia quando havia o que comer, dormia onde era
possível. Era, na falta de um conceito melhor, um sem-teto. Por razões que a
razão desconhece, em determinado momento, o animal resolveu adotar o turista.
Além disso, permitiu que ele fosse contaminado pelo autoengano. Ao imaginar que
estava adotando um gato, o menino ignorou que era o felino que detinha o poder
sobre ele. Uma nova versão da velha história de vender gato por lebre.
O fato concreto é que, quando as férias terminaram, o bichano subiu a serra. Imediatamente tomou posse do novo lar. Esse gesto de bondade com os humanos lhe custou caro. Foi castrado. Protestei contra, mas – como sempre – fui voto vencido. Aliás, nem eu nem o gato tínhamos direito ao voto.
Pois é, em alguns momentos,
comida e proteção equivalem à escravidão. Não sei se Gato chegou a essa
conclusão, no instante em que perdeu a virilidade. Eu, testemunha ocular da
história, fiquei triste com o desfecho, imaginando que ele, o gato, se
transformaria em um bibelô gordo, desses que ornamentam a sala de visitas dos
burgueses. Claro que estava enganado. Gato tinha personalidade. Sempre se
recusou a ser domesticado. Extremamente curioso, corria para lá e para cá toda
vez que havia algum movimento suspeito. Cometia pequenos e grandes delitos.
Transformava os humanos em brincadeira de gato e sapato. A verdade é que ele
tinha uma péssima personalidade. Somente fazia o que queria. E quando queria.
A escolha do nome de Gato foi
outra epopeia. Creio que aqueles que tiveram o prazer de conviver com ele
testaram várias alternativas e nenhuma se mostrou satisfatória. Com a altivez
de um deus egípcio, Gato fazia questão de descartar as mais óbvias
possibilidades. Também recusou algumas tentativas exóticas. Não respondia aos
chamados, mostrava cara feia, miava com intensidade. Sem escolhas, o seu dono
(dono?) concordou em chamá-lo Gato (assim, com G maiúsculo).
Não é desses fatos corriqueiros
que quero lembrar. A imagem que vou guardar é outra. Quando eu ia até o
apartamento em que o menino morava, Gato costumava se aproximar de mansinho
(aquela velha tática de quem não quer nada e fica feliz quando leva tudo), e
subia no meu colo. Se eu não manifestasse contrariedade, ele subia mais um
pouco, deitava no meu peito, fechava os olhos e ficava em doce ronronar até que
um de nós dois se cansasse e modificasse a situação.
Pensando bem, não era somente
comigo. Muitas vezes o vi fazer isso com o menino. Ao transmitir o calor de seu
corpo para algum outro corpo, ele estava passando uma mensagem de carinho. Era
uma forma de interação social? Não sei. Talvez fosse uma concessão para aqueles
que o protegiam. Gato era um enigma. E isso contribuía para que olhássemos para
ele com ternura. Com a ternura que merecem os rebeldes.
Apesar de ser um animal
independente, egocêntrico e próximo do anarquismo, Gato era simpático – desde
que isso lhe fosse conveniente. Sabia conquistar atenção e afeto na mesma
proporção com que declarava aversão com aqueles que não se submetiam aos seus
caprichos. E não foi para poucos que mostrou alguma hostilidade.
Agora, que não o temos mais entre
nós, percebo que esta elegia fúnebre é uma forma de dizer que Gato deixou uma
imensa saudade, dessas que não tem conserto.
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