No campo de futebol da escola, as
duas equipes pareciam estar lutando pela vida. O placar do jogo estava igualado
até o momento em que um dos zagueiros cometeu um erro grosseiro. O gol se
revelou mero detalhe na tragédia esportiva. Além da pressão emocional, o
relógio anunciava que o fim da partida estava próximo.
Um dos jogadores, aluno
esforçado, desses que passam horas diante dos livros, não se conformou com o que o destino estava reservando para o seu time. Com a bola embaixo do braço,
providenciou a nova saída do jogo e pediu que lhe passassem a bola. Com uma
habilidade que (até então) era desconhecida, foi driblando os adversários. Um
por um. Abriu uma avenida no campo do adversário. Quando se aproximou da grande
área, tendo somente o goleiro na sua frente, chutou forte no ângulo direito.
Com a mão erguida, o goleiro
projetou o corpo na direção da bola. Esforço inútil. A bola passou por entre os
seus dedos e somente diminuiu a velocidade quando se chocou contra a
rede. Empate. Foi desta maneira que tudo terminou. O autor do gol salvador
foi considerado um herói pelo resto do ano.
O passado é como vestir um casaco
velho – roupa puída que projeta alguma luz sobre o que imaginamos ter existido em algum momento. Imerso na névoa onírica, aquele que relata uma história vai preenchendo
as lacunas que surgem na narrativa. Assim, a história que é contada nem sempre
corresponde ao que aconteceu, embora esse tangenciar seja uma forma de se
aproximar dos fatos.
Quase cinquenta anos depois
daquele jogo de futebol, o menino que reagiu contra uma possível derrota está
muito diferente. Ficou conservador. Não consegue conviver com as diferenças ou
com as mudanças socioeconômicas. Alguma coisa aconteceu com ele. Preferiu
construir uma verdade particular – desprezando o que lhe desagrada.
O tempora, o mores, alertava o
filósofo Marcus Tullius Cicero (106 – 43 a. C), ciente de que os modos e as
modas são frutos da vivência dos indivíduos. Ou seja, os acertos e as
distorções estão relacionados com o processo histórico que cada pessoa precisa
enfrentar durante a vida. Nem sempre essa transição ocorre de maneira pacífica.
Mais tarde, bem mais tarde,
Sigismund Schlomo Freud (1856 – 1939) acrescentou outro elemento à equação: a
construção emocional dos indivíduos está relacionada com a fragilidade (ou não)
do ego. O narcisismo costuma ser mais forte que a racionalidade e muitas ações
são consequência de uma necessidade compensatória para algum desgosto ou
desacerto.
Na atualidade, não há surpresa
quando a ilusão surge no horizonte. Esse proceder sebastianista de salvação,
que se espelha na figura do herói (aquele que sacrifica a própria vida pela
humanidade), almeja ignorar que as ações de transformação do espaço social
precisam ser planejadas como um ato coletivo, como uma forma de integrar os
diversos agentes em uma proposta para promover o bem comum.
O menino que acreditou que poderia mudar – sozinho – o rumo de uma partida de futebol (ou, por extensão, do mundo) ficou preso no passado. E, se tudo correr bem, deve ficar lá por toda a eternidade.
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