Páginas

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

SOLDADOS DE SALAMINA

É praticamente consenso na Teoria da Narrativa que os narradores em primeira pessoa não são confiáveis. Em outras palavras, são mentirosos. Tão mentirosos que chegam a acreditar que nunca será mentira o que relatam como ficção.

O escritor espanhol Javier Cercas gostaria – e muito − de burlar essa regra. Um de suas mais interessantes tentativas resultou no romance Soldados de Salamina, que tem como enredo básico o fuzilamento, em janeiro de 1939, de Rafael Sánches Mazas (1894−1966), um dos fundadores da "Falange Espanhola".

A narrativa se assemelha a um relato jornalístico, desses que se atém exclusivamente ao registro dos fatos, sem propor interpretações ou alusões. A idéia é recuperar alguns detalhes obscuros de uma história que apresenta características de lenda. É difícil acreditar que alguém sobreviva a um pelotão de fuzilamento. Segundo Sánches Mazas, que contou esse episódio diversas vezes para os amigos, foi isso o que aconteceu. Além disso, ainda há um episódio complementar. Escondido na mata, depois de ter escapado da morte, o fascista foi descoberto por um soldado republicano − que fingiu não tê−lo visto, possibilitando inusitada chance de sobrevivência.

Essa história, e seus contornos pouco verossímeis, está estruturada em interessante jogo especular. O narrador de Soldados de Salamina é um jornalista e escritor chamado Javier Cercas. Nessa condição, ele muitas vezes desce do pedestal onisciente, onipresente, onipotente, e participa do texto como personagem − daqueles que não se contentam em se movimentarem pela história que estão contando, também querem interferir no andamento narrativo. O problema maior nesse ponto da discussão é que o autor de Soldados de Salamina também se chama Javier Cercas, jornalista e escritor.

Embora esses homônimos pertençam a estatutos narrativos diferentes, algumas indefinições se projetam no romance − principalmente quando o leitor não se encontra em condições para distinguir um do outro. Aliás, o emaranhado se torna um pouco mais confuso quando entra em cena um terceiro elemento. Em determinado momento do texto, Javier Cercas, o narrador/personagem, se encontra com outro personagem: Roberto Bolaño.

O grande senão dessa situação é que o escritor espanhol Javier Cercas foi grande amigo do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003). Trocando em miúdos: Os amigos "reais" (seja lá o que isso for) são arremessados para dentro da ficção (lembrando, ao longe, Alice no País das Maravilhas ou o filme Rosa Púrpura do Cairo, dirigido por Woody Allen, em 1985)

O personagem Roberto Bolaño conta para o narrador/personagem Javier Cercas como conheceu uma dessas figuras que provavelmente só fazem sentido na ficção. Bolaño estava trabalhando na costa espanhola em um camping de traillers como faxineiro e vigia noturno. Entre os hospedes do lugar estava Antoni Miralles. Logo eles se tornaram amigos. Miralles chamava facilmente a atenção por ter o corpo repleto de cicatrizes, lembranças carinhosas do tempo em que foi soldado republicano em Espanha. Depois, por injunção das circunstâncias políticas, o franquismo tinha ascendido ao poder, foi para o norte de África, onde combateu as forças nazistas. No final da II Guerra Mundial, esteve no front europeu. Depois que terminou o conflito, foi viver em algum lugar de França.

A história é mirabolante, cheia de detalhes, digressões e bom humor. O narrador/personagem Javier Cercas fica deslumbrado quando descobre que Miralles esteve, em 1939, na região em que Sánches Maza foi fuzilado. Como não poderia ser diferente, resolve procurar pelo ex-soldado, suspeitando (sem o mínimo fundamento) que talvez tenha descoberto quem poupou a vida do falangista.

Depois de nova rodada de desencontros, contando com a ajuda de sua namorada, Conchi (hilariante), o narrador/personagem Javier Cercas encontra Miralles em uma casa de repouso para idosos em Dijon, França. A conversa entre os dois é muito engraçada. Miralles é um personagem divertido, daqueles que cultivam suave desrespeito pelo que os mais jovens consideram como importante.

Ao final das 241 páginas de Soldados de Salamina, cabe ao leitor decidir se a narrativa se fecha ou se continua aberta. Na ordem geral das coisas, isso pouco importa. A peripécia está em narrar uma série de histórias fantásticas com um mínimo de coerência e técnica. Como observa o narrador, em algumas ocasiões lembrar o passado é uma maneira do passado se agarrar a lembrança de quem o está narrando, um exercício de resistência contra o esquecimento.

P.S: Há uma versão cinematográfica de Soldados de Salamina, dirigida por David Trueba, em 2003.

Nenhum comentário:

Postar um comentário