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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXIII)

 

A Barca de Caronte. Pintura de Alexandr Dmitrievich Litovchenko (1835-1890).


Adeus, quarentena! Foi isso que disse para mim mesmo, cerca de 20 dias atrás. Convocado a voltar ao serviço presencial na repartição pública, separei máscaras descartáveis, álcool gel e livros. Não tenho certeza se esses objetos serão capazes de me proteger. Intimamente, cultivei sentimentos similares aos de Raymond Rambert.  

Rambert, personagem do romance A Peste, de Albert Camus, é um jornalista que não consegue aceitar o isolamento da cidade de Orã – cenário de uma epidemia. Quer escapar a qualquer preço, inclusive pagando para que os guardas o ajudem a fugir. Como costuma acontecer nas tragédias, o destino parece conspirar contra.

Ninguém gosta de conviver com a morte. O Brasil acumula 160 mil vítimas do Covid-19. Como sou pessimista em teoria e otimista na prática, depois de alguns dias de apreensão, deixei os pensamentos mórbidos de lado (o rio Aqueronte, a barca de Caronte). Seja o que Buda quiser, sussurrei em ritmo de mantra, acreditando na luminosidade dos versos que a vida está escrevendo diariamente.

Foi bom rever os colegas, contar e ouvir histórias, voltar a ler os blogs de política (todos iguais em substância e tolices), atravessar as tardes bebendo água mineral (com gás). Na próxima semana, vou levar uma caneca e uma caixa de chá (maçã com canela). Será uma declaração explícita de que estou conseguindo (física e psiquicamente) me equilibrar nessa corda bamba.  

No mais, tudo igual. Passo o máximo do tempo possível dentro do apartamento. Ou seja, estou tentando manejar a vassoura e o pano de chão com um mínimo de competência. Não é tarefa fácil. Várias vezes, em crises próximas do desespero, pensei em solicitar o socorro da minha habilidosa Assistente para Assunto de Limpeza Doméstica (AALD). Várias vezes respirei fundo, contei até dez e ponderei os riscos. Concluí que a situação sanitária ainda não apresenta razoável segurança.   

As boas notícias são duas. Primeiro, faz mais de quatro meses que não quebro prato ou copo. Esse feito, digno dos heróis mitológicos, provavelmente vai me habilitar para o Guinness World Records. Estou pensando em me inscrever. Segundo, no supermercado fingi que não vi (e, rapidamente, olhei para o outro lado) uma caixa daqueles bombons recheados com licor – depois de oito meses sem beber uma única gota de álcool, foi fácil resistir a essa tentação.   

Em compensação, não consigo controlar a compra compulsiva de livros. É um vício – mas não quero ser curado! Sei que não terei tempo para ler todo esse oceano de papel e tinta em que estou me afogando, mas sou atraído pelas novidades. Em paralelo, quero esgotar alguns assuntos. Estou planejando escrever algo sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna (a pilha bibliográfica aumenta em nível exponencial). Também desenvolvo um projeto relacionado com a literatura catarinense contemporânea. Todo dia descubro um autor que não estava no radar. Isso é bom e é ruim. A diversidade sempre será bem-vinda, mas a multidão assusta.

Itaque imperavi mihi ut viverem; aliquando enim et vivere fortiter facere est. As palavras são de Sêneca, o filósofo estóico romano, e as entendo (neste momento em que não há trégua na luta contra a pandemia) como uma proposição existencial e, de certa forma, oposta ao pensamento de Raymond Rambert: Deste modo, determinei-me a viver. De fato, às vezes, viver também é para os fortes.


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