o
teu silencio corta os pulsos de quem anda por aí desavisado
(Camila Assad)
Toda cura é provisória. A reincidência não deve ser descartada. A doença está à espreita, preparando o seu retorno triunfal. Viver é muito perigoso, explicou Riobaldo Tatarana, numa dessas viagens do pensamento pela sabedoria popular, talvez ecoando, mesmo sem perceber, que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte, como escreveu Michel Eyquem, Seigneur de Montaigne (1533 – 1592), influenciado por Marcus Tullius Cicero (106 a. C – 43 a. C).
Em tempos de pandemia, sobra pouco espaço para a esperança. Todos os dias alguém desaparece (parentes, amigos, vizinhos, conhecidos e desconhecidos). A ausência, essa matéria que parece sólida na memória, em algum instante impreciso se dissolve ou é incorporada com outras faltas e escorre para longe, nos deixando à mercê das perdas emocionais. E sempre temos algo a perder.
A mentira se esconde nas estatísticas. As tabelas de Excel relativizam a existência humana, negam a pluralidade, usam o recorte para explicar fatos que estão distantes da explicação. Não se deve acreditar nos números. As palavras também não são confiáveis. Alguns horrores estão aquém da descrição textual. A linguagem mais precisa sempre será incapaz de retratar a tragédia. O mesmo se pode dizer sobre as imagens – esse conjunto de fragmentos que despreza a totalidade.
Todos os dias as redes sociais e os jornais televisivos anunciam o inominável. Ninguém diz que o futuro está saturado de ausências. A verdade tem gosto amargo e a coragem é um produto escasso no supermercado das banalidades. Quinhentas mil pessoas são mais do que duas vezes a população de uma cidade média brasileira. Negar a ciência significa dar um abraço na morte.
A estética da dispersão projeta as ruínas que alicerçam as realidades paralelas. Ao contrário do discurso do Estado, mais preocupado com a economia do que com a população, a pandemia não acabou. Só sobreviverá quem redobrar os cuidados, quem entender que a vontade de potência (Nietzsche) está no adotar as medidas de segurança. A falsa impressão de que o pior já passou é apenas isso, uma falsa impressão.
Na cena final de “A Peste”, de Albert Camus (1913-1960), Bernard Rieux, o narrador, observa que a alegria sempre esteve ameaçada. E diz que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E que devemos estar preparados porque ele virá talvez no dia em que para desgraça e ensinamento dos homens, a peste [acordará] os seus ratos e os [mandará] morrer numa cidade feliz.
Assim como se deve olhar para os dois
lados ao atravessar a rua, também cabe se proteger contra a irracionalidade. A precariedade
do ser humano lembra uma folha carregada pelo vento.
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