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segunda-feira, 6 de setembro de 2021

À LUZ DE VELAS (versão modificada)

 


Durante algumas horas, como consequência de uma tempestade, parte da cidade ficou no escuro. Sem saber exatamente o que fazer, esperando que a energia elétrica fosse restabelecida, ele foi até a janela do apartamento. Olhando a escuridão urbana e a chuva que não parava, lembrou-se dos dias em que a luz das velas ou do lampião de querosene estabelecia cores e sombras que deixaram de existir.

Na infância, em Morrinhos, no coração da Coxilha Rica, na propriedade de seus avós, não existia eletricidade, todos dormiam antes das vinte e uma horas e o mundo era mais simples, menos dependente da tecnologia. Um dos poucos contatos com o mundo exterior era ouvir, no rádio de pilha, a sessão de avisos da Rádio Clube.

Pela manhã, depois de ajudar na ordenha das vacas, o menino ficava sentado na soleira da casa grande. Caneca de camargo na mão direita, pedaço enorme de pão feito em casa (camada de nata com um dedo de espessura) na outra mão, a boca lambuzada pela voracidade, seu olhar ultrapassava a mangueira, as vacas que estavam sendo conduzidas para a invernada, os gritos do capataz, o dia que rompia, inexorável como a vida.

Algumas vezes o céu ficava encoberto pela névoa – que ia se dissipando lentamente. As poucas nuvens que surgiam no horizonte lembravam pedaços de lã estendidos na cerca de arame. O sol, ao amanhecer, era uma mancha sanguínea – mais tarde se transformava em imenso girassol.

Para o almoço, bastava pedir que alguém fosse à horta e colhesse batatas, tomates, alfaces, cebolinha verde. Na volta, se pudesse carregar, trazia parte da sobremesa: um punhado de butiás, cachos de uva, ameixas, figos (carnudos, sumarentos, doces como deve ser o paraíso). Na despensa, guardadas em vidros um pouco diferentes daqueles da compota de pêssego, vários tipos de geleias, doce de gila, marmelada – quitutes reservados para as raras visitas, de seis em seis meses aparecia um vizinho querendo negociar pelegos, sabão de cinzas ou uma saca de feijão.

No final da tarde, diante do oratório, ninguém escapava de rezar o terço, um ritual interminável. A voz da avó ditava o ritmo das orações e as crianças aproveitavam o momento místico dos adultos para prestar atenção ao carreiro de formigas que atravessava a sala e desaparecia em um buraco na parede. Aquilo era uma praga doméstica, não adiantava destruir os formigueiros, era impossível evitar que a casa, algum tempo depois, fosse assaltada por um novo exército de operárias. Essa distração servia para questionar o estar ajoelhado, rezando, uma tarefa que não era divertida. Melhor era sonhar com outra vida, de preferência na companhia dos brinquedos feitos com ossos e madeira.

Não sei quantos minutos ele ficou na janela, olhando para um tempo em que computador, televisão e celular não tinham importância. As recordações desapareceram quando a luz voltou e foi necessário devolver o passado à escuridão.

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