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terça-feira, 28 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXVII)




A vantagem das lives é que podem ser vistas post mortem. A taxidermização do mundo virtual transformou-se em algo natural. Há quem diga que a imortalidade está (ou estará) ao alcance dos recursos tecnológicos.     

Por diversos motivos perdi parte do festival de literatura brasileira Na Janela, promovido pela Companhia das Letras, nos dias 24, 25 e 26 de maio. Bastou ir ao canal da editora, no YouTube, e rever as entrevistas perdidas. Lá estavam os escritores e os mediadores com o frescor do dia da realização da live.  

No Instagram, os eventos podem ser vistos  no máximo  por vinte e quatro horas. Isso não é obstáculo. Quase todas as lives são salvas e exibidas, ad æternum, em outros canais.

O que chama a atenção na frase anterior é que o uso das palavras live, salvas e ad æternum na mesma frase possibilita um choque linguístico e semântico. Mas poucas pessoas percebem isso. Baseadas na proposição de que a comunicação precede às normas gramaticais, essa mistura de inglês, português e latim não desperta a mínima curiosidade no dia a dia. Vivemos um samba do crioulo doido de original sabor.
  
Não bastasse isso, alguém pode alegar que – etimologicamente – não há nenhuma confusão, o inglês também possui fortes raízes latinas. Somos primos, se é que se pode dizer. Então, se estamos em família, que mal pode haver?



Quanto a xenofobia se manifesta e faz discursos histéricos contra o uso descontrolado de expressões alienígenas, cabe recordar que o português falado no Brasil (em Portugal não é muito diferente) é um dialeto vivo, híbrido, e que sempre se mostrou receptiva aos acréscimos. Impossível esquecer as inúmeras contribuições do árabe, das línguas e dialetos africanos (iorubá ou nagô, quimbundo, banto), dos idiomas e dialetos indígenas (os mais importantes agrupados nos troncos linguísticos tupi-guarani e macro-jê), do francês (que era très chic na corte imperial), etc. Em menor escala, e regionalizadas, encontramos palavras de origem alemã, italiana, japonesa, polonesa e holandesa.

Policarpo Quaresma, o divertido personagem criado por Lima Barreto, morreu sem entender o básico. Esporadicamente, o seu fantasma reaparece e, no Congresso Nacional, propõe algum projeto para restaurar a “pureza” da língua. Acaba “dando com os burros n’água”, mas isso não é impedimento para que, em outra oportunidade, nova tentativa seja feita.

Duas questões incomodam bastante. O uso da palavra live em substituição da expressão ao vivo (que mostra a influência do colonialismo cultural) e o uso de salvar nesse contexto. Independente do preciosismo, salvar se refere a algo que se livra do perigo, da ruína ou da perda total. Também pode significar, segundo o Aurelião, conservar, guardar, manter. Não estou convencido que o termo seja o adequado em relação às lives, porque confere aos eventos uma estrutura física que obviamente não possuem. Mas, como se sabe, o uso consagra o significado. O que hoje parece anacrônico, amanhã pode ser apropriado. E segue o baile, como se diz no sul no Brasil.

(P.S.: Pretendia comentar algumas lives que assisti nos últimos dias. O texto acabou tomando rumo inesperado e, quando percebi, estava longe do destino inicial. Acontece.)  


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