Páginas

sábado, 11 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XX)


Uma das poucas fotos em que os dois Raul estão juntos, talvez 1970


Faz mais de mês que decidi parar de consumir bebidas alcoólicas. Não foi nenhum sacrifício. Frequentemente faço isso. No dia a dia, estou lavando o encanamento (na expressão de um amigo) com água, suco de laranja, chá e Coca-Cola. O único produto embriagante e em uso diário é o álcool gel.

Antes que alguém pergunte, esclareço que não estou com síndrome de abstinência. Por enquanto.  

Um mês não é o meu recorde pessoal. Em tempos remotos, remotíssimos, tive uma crise de hepatite. Fiquei um ano inteiro de molho: sem álcool, sem café, sem refrigerantes. Limpeza total. Ao ser liberado do tratamento, surgiu um dano colateral. A cafeína – estranhamente – se tornou insuportável. As únicas exceções aceitáveis para esse desacerto são Coca-Cola e Tiramissu (um dos meus doces favoritos).

Na minha família, o alcoolismo sempre esteve presente. Meu pai e alguns dos meus tios praticaram o vício com uma assiduidade que surpreende não terem sido devorados pela cirrose hepática. Como compensação, se é que a informação pode ter alguma validade para essa conversa, vários membros da família trabalharam com a venda do produto (no atacado e no varejo).




Dirigindo um Chevrolet carregado de bebidas, meu pai e o ajudante iam de boteco em boteco distribuindo os pedidos, oferecendo marcas e sabores. Uma das etapas menos agradáveis desse serviço era emitir a nota fiscal, que incluía calcular o Imposto de Serviço de Qualquer Natureza (ISQN). Com escolaridade precária, ele tinha alguma dificuldade na execução dessa tarefa.

No início dos anos 70 do século passado, foi decidido que eu tinha que acompanhá-lo aos sábados. Foi nesse momento que comecei a perceber que o trabalho pode assumir uma forma de tirania – muitas vezes imperceptível para o trabalhador. Ao trocar a mão de obra por uma remuneração que não permitia autonomia suficiente para recusar novas cargas de trabalho, perdi o poder de escolher.

Sem precisar ir para escola e querendo ir na matinê de domingo, no cine Tamoio, tive que enfrentar a realidade: só poderia desfrutar da companhia dos colegas e do prazer cinematográfico se fosse capaz de ganhar o pão com o suor do meu rosto. Não sei se foi essa a expressão que ele usou, talvez tenha sido algo parecido. Na prática, significou que precisava substituí-lo nas anotações e nos cálculos nas notas fiscais.

Raul pai, primeiro da direita para a esquerda, anos 60

Enquanto eu ia preenchendo o bloco de notas fiscais, ele, entre uma dose e outra de conhaque Dreher, ficava conversando com os amigos. Em intervalos aleatórios, controlava a minha letra – uns garranchos, elogiava (a caligrafia não melhorou muito, depois de todos esses anos, preciso confessar).

Foi assim que me tornei aluno da geografia urbana. Acostumado a fazer sempre o mesmo trajeto, de casa para a escola, da escola para casa, fui surpreendido com lugares tão estranhos (para mim) como a Ferrovia, a Várzea, o Santa Helena e a Zona. Era outro mundo, parte da cidade que estava se revelando aos meus olhos. Também percebi que, não importa o dia e a hora, sempre há um bar aberto, um bêbado a divertir o povo, umas pessoas solitárias tentando afogar sentimentos e carências. Nem tudo é diversão.  

O passado sempre volta para atormentar quem está quieto. Talvez seja uma agulhada do inconsciente para impedir a acomodação. Talvez seja saudade.


Um comentário: