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quinta-feira, 30 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXIX)




Nos últimos anos, salvo exceções, costumávamos almoçar juntos nas quintas-feiras. No princípio, éramos três. Os agregados, muitos. Em alguns momentos, quando se multiplicavam os convivas, a mesa ficava mais festiva. O restaurante invadido, juntar as mesas, a conversa desencontrada instituindo a bagunça. A anarquia como sinônimo do afeto.

Sempre houve a possibilidade de alguém nos comparar com os três mosqueteiros (que eram quatro), porque o que nos une é um esgrimir (metafórico) contra os soldados do Cardeal Richelieu. Tolice. Somos os três patetas. Comédia pastelão é a nossa especialidade. 

Esse fato se comprovava em mesa de bar, a enésima garrafa de cerveja como pilar de alguma discussão maluca. A existência dos discos voadores, as preferências futebolísticas, as belezas dos países de língua espanhola, a MPB, os tropeços e trapaças governamentais – o catálogo nunca foi escasso. A exposição de motivos nessas conversas costumava se pautar pela ausência de substância e de agilidade intelectual (como é de praxe em conversas de bar). No auge da argumentação, talvez em razão de algum surto de lucidez, tudo desmoronava como se alguém tivesse assoprado o castelo de cartas. Rir se apresenta como o melhor remédio, o sinal inequívoco para mudar de assunto e reiniciar a encenação.   

Bife à milanesa era o cardápio principal das quintas-feiras. Claro, comia quem tinha vontade ou fome, existem outros pratos no cardápio, gosto não se discute, etc. e tal. O importante era estarmos juntos, alimentar a alegria, ampliar a algaravia, deixar na rua os problemas que se recusam a ser domesticados.  

Indeterminados são os motivos que fortalecem uma amizade. Somos de diferentes origens geográficas e profissionais. Melhor assim. Salve as afinidades eletivas, que sempre produzem bons frutos! E isso, trocando em miúdos, significa que ninguém se importa (muito!) com o fato de estarmos morando (por um desses acasos da sorte ou do azar) nessa terra ignorada pelos deuses do Olimpo e habitada pela aristocracia bovina falida (como diria o Rogério Castro, de saudosa memória). Em Roças Novas (Minas Gerais) ou San José (Uruguai) talvez fosse melhor, mas o destino raramente colabora.

Foi o Covid-19 que causou a mudança de hábitos. Recolhidos ao isolamento social, todos enquadrados nos grupos de risco, diariamente mandamos mensagens pelo whatsapp ou, esporadicamente, fazemos chamadas de vídeo. Desculpas para ficamos tagarelando sobre as trapalhadas políticas, sobre alguma bobagem praticada pelos outros amigos. Assunto não falta. Mas,... Não é a mesma coisa.


Em algum momento, mais tarde, provavelmente bem mais tarde, quando a crise viral se transformar em assunto para inúmeras conversas no botequim, entre uma batatinha frita e um gole de chope, alguém perguntará: você se recorda da época em que ficamos presos em casa? Uma breve nuvem de melancolia passará pelos nossos olhos e diremos que foram tempos difíceis. Essa resposta automática, protocolar, esconderá que estaremos pensando em outra coisa: que há perdas que não podem ser compensadas pelo presente e pelo futuro. E lembraremos dos bifes à milanesa que deixamos de comer, das bobagens que orientavam as nossas conversas e da falta que se materializa no não poder desfrutar da companhia uns dos outros.

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