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domingo, 12 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXI)



Será que tem remédio para curar meu tédio?
Será que existe cura para toda essa loucura?
(Vicka: Pausa)


O dia passou rápido. No período da manhã, lavei a louça, limpei o banheiro, separei o lixo, li os jornais na Internet. Conversei com algumas pessoas pelo whatsapp, pedi comida pelo telefone. Repetição monótona do aconteceu ontem, anteontem e nos dias anteriores.

Depois do almoço, coloquei uma cadeira na sacada e fiquei tomando banho de sol. Li uns dois capítulos de um romance de ficção científica, joguei cerca de uma hora no celular. Quase dormi sentado. Levantei algumas vezes, e, debruçado no parapeito, fiquei olhando para os carros que passam rápido pela avenida.


Estou protegido. Infelizmente, algumas pessoas não estão. Gostaria de saber notícias do Chico, um morador de rua que foi meu “vizinho” quando residi no centro da cidade. Será que ele está bem? Não tenho como saber. Em um mundo perfeito, o poder público teria acolhido os sem-teto em algum abrigo. Estamos longe disso. Os marginais (com ou sem Covid-19) continuam à margem da sociedade.

A voz de Chico é difícil de ser entendida. Ele fala uma algaravia muito particular. Ao encontrá-lo, usualmente ofereço uma cédula de R$ 2,00. Ele pega a nota e vai embora. Considero isso uma vantagem. Ele não perde tempo agradecendo. Eu não preciso fingir que acredito no discurso decorado que acompanha algumas pessoas que vivem em condição de vulnerabilidade.

A única vez que Chico falou de forma legível comigo foi em um final de tarde. Estava chovendo. Com o dinheiro na mão, ele me disse, quase sussurrando: Já tinha desistido de beber a minha cachacinha hoje.

Fiquei olhando-o se distanciar, envolto pela garoa. Fiquei alegre por ele.

Essa história trouxe à tona outra, mais antiga. Foi nos tempos do Marrocos. Estávamos sentados na mesa quatro, como sempre, quando o sujeito entrou no bar. Sem perdeu tempo, com voz de locutor esportivo, pediu dinheiro para comprar cachaça. Lembro que alguém (quem?) rebateu a solicitação dizendo que isso não fazia sentido, onde é que se viu um mendigo pedir dinheiro para comprar cachaça? E concluiu o discurso moralista: se você quiser comer alguma coisa, eu pago.

O pedinte olhou para o sujeito e disse, sem medir as palavras: Você é surdo? Eu pedi dinheiro pra cachaça, se eu estivesse com fome, pediria dinheiro para comida, não estou com fome, eu quero é cachaça.

Aquela postura merecia aplausos. Poucas vezes na vida vi alguém enfrentar as agruras da vida com tamanho estilo e sinceridade.  

Alguém (quem?) chamou o dono do bar e pagou pela bebida. Duas doses. Depois de beber a cachaça, o homem foi embora. Nunca mais o vimos.


Diariamente, o mundo nos revela seus personagens – gente de carne e osso, que sangra e sofre, que ama e odeia. Alguns deles são inesquecíveis. Basta abrir os olhos e ver. Ao lado dos bem-comportados, limpinhos e cheirosos, encontramos os excluídos, os outsiders, os que escolheram viver de forma diferente da que recomenda os bons modos.

O segundo grupo raramente encontra carinho e aceitação. O homem é o lobo do homem, dizia Thomas Hobbes (1588-1679). Difícil discordar.  

Um comentário:

  1. Belo texto. Realmente num lugar sério, não teríamos tanta gente invisível. Quando eu era criança,havia um homem que andava com uma lata e cantava músicas do Roberto Carlos. Uma noite ele sentou bem próximo de casa e cantou a madrugada inteira. Eu gostei da serenata!

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