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quinta-feira, 9 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XVIII)




Vaso ruim não quebra, dizia minha avó, em um daqueles momentos de sabedoria popular que a fizeram famosa (em nossa família). Se não estou enganado, ninguém jamais ousou contestar essa afirmação, seja porque respeitávamos a autoridade matriarcal, seja porque todos os vasos lá em casa eram bons – e vários se espatifaram no chão.

Nestes tempos sombrios em que estamos vivendo, lembrar da figura forte que estava abrigada em corpo frágil, pessimista em teoria e otimista na prática, faz bem para a (minha) saúde.

Por um desses desacertos da vida, só consegui localizar uma foto antiga, recordação minguada: Dona Henriqueta Araújo Arruda Guimarães segura o braço de seu esposo, Silvano Guimarães – um derrame o deixou por muitos anos com o lado esquerdo paralisado. Quem terá recortado a imagem do casal de um contexto maior? O que foi suprimido? Não encontro resposta para esses questionamentos. Preciso consultar minhas irmãs para tentar resolver o mistério.

“Tia Quêta” era uma defensora radical do catolicismo. Próxima do fanatismo religioso, rezava o terço todos os dias, no final da tarde! Era uma enxurrada de Ave Marias, Pai Nossos e Salve Rainhas. As contas do rosário passeando por aqueles dedos magros.   

Confesso que detestava aquele fervor. Preferia ler ou ver televisão. Por isso, na adolescência, quando a visitava, costumava apresentar alguma desculpa para ir embora antes da reza. Nem sempre funcionava. Diversas vezes fui avisado que Deus não perdoava “alguns pecados”, o tom de voz destacando o desagrado com a minha falta de fé. Na sala, uma gravura do Sagrado Coração de Jesus sangrando não aliviava a situação.

Durante o dia, minha avó era uma pessoa “normal” (seja lá o que isso for!), sempre atenciosa com os netos, adorava ter companhia no “café com mistura” das quatro da tarde. Mesa farta (pão feito em casa, sequilhos, bijajica, bolachas variadas, queijo, geleias). Um item se destacava no meio de tantas variedades: as roscas de coalhada, especialidade da anfitriã. Nunca mais encontrei aquele sabor, aquela textura.


Dominando a memória familiar, contava causos de outros tempos. Curiosidades sobre a vida rural, as plantações e suas variações sazonais, os bailes de antigamente, quem casou com quem e porque fez isso, a alegria de receber a visita dos vizinhos, dos mascates, do professor itinerante. Muitas vezes não prestei atenção naquelas narrações. Distração que agora cobra o seu preço, queria recordar algumas dessas histórias e não consigo.

Minha maior dívida com “Tia Quêta” jamais poderá ser paga. Quando tinha cinco, seis anos, passei uma temporada com eles, lá em Morrinhos, coração da Coxilha Rica. Professora de catequese na Igreja de São Sebastião, minha avó concluiu que não podia ensinar a palavra de Deus para uma criança que não soubesse ler e escrever. Então, nas horas vagas e com auxilio de uma velha cartilha fui aprendendo que “b” mais “a” é igual a “ba” e que a soma das letras resulta em palavras e frases. E que essas ferramentas podem ser usadas para defender ideias.

Quando voltei a morar com meus pais, já estava alfabetizado.   

Depois de todos esses anos, tantas trapalhadas encenadas, aplaudidas e vaiadas pelo distinto público, não me resta outra opção senão concordar com Dona Henriqueta: somos todos vasos ruins!

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