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segunda-feira, 27 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXVI)




O primeiro prato quebrado ninguém esquece.

Aconteceu. Finalmente. Mais de 30 dias lavando louça (pratos, copos, travessas) e ainda não tinha protagonizado nenhum acidente. Fui limpar uma crosta de queijo que estava grudada no fundo do prato e fiz algum movimento inadequado, não sei exatamente o quê, ele escapou da mão e, depois de ter efetuado uma elegante parábola no ar, se espatifou em incontáveis pedaços no chão da cozinha.

Para não perder o costume e aproveitar o momento patético, emiti vários palavrões. Em alto e bom tom, como recomenta o manual de bons modos que regula o comportamento social da minha família. Não sei se algum vizinho escutou o desabafo. Se isso aconteceu, não recebi manifestações públicas de desagravo – ou elogio.  

Nada mais restou senão ir buscar a vassoura e a pá de lixo. Não fiz isso com boa vontade. Não tenho as habilidades necessárias para ser um bom dono de casa. Em situação normal, provavelmente varreria os fragmentos maiores e, depois de amontoá-los em um canto, chamaria a minha Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD).

O Covid-19 e a quarentena mudaram hábitos, criaram obrigações. A bagunça que faço perdeu a rede de segurança. Isso serviu para me mostrar que sou apenas um palhaço incompetente em picadeiro sem plateia. E que procura, na medida do possível, administrar as coisas miúdas que constituem o dia a dia.


Tentei recolher todos os pedaços do prato. Para não desperdiçar a oportunidade, resolvi passar um pano molhado no chão da cozinha. Novas manchas tinham surgido não sei de onde. Na minha vã imaginação, tudo estava bem, estava me cuidando para não derramar nada no chão. As aparências enganam. Nisso e nos cacos de porcelana. Encontrei alguns em lugar insuspeito. Outros, abusando da minha miopia, estavam bem na minha frente. O inferno é aqui, disse para mim mesmo, e emendei mais uma fieira de nomes feios, alguns que fariam corar as estátuas da praça. Que praça? Qualquer uma.

Em determinado instante, foi necessário parar com a limpeza. Estava suando. Sempre fui inimigo de exercícios físicos. Gosto de caminhar, mas estabeleço um ritmo lento – como compete ao “flâneur”, que se interessa mais pela paisagem do que pelo percurso.

Abri a geladeira, enchi um copo com água mineral. Encostado no balcão da pia, saciei a sede. Se fosse personagem de algum romance, essa seria a cena ideal para surpreender o leitor com algum pensamento profundo, alguma frase de impacto. Lamentavelmente, desperdicei a ocasião. Só consegui pensar banalidades.

Algumas frações do prato ainda estão espalhados pela cozinha. Cansei de brincar de esconde-esconde. Vou recolhê-las na medida em que elas permitirem ser encontrados. Para evitar acidentes, continuo usando chinelos. 

A parte boa é que não me cortei. São muitas as possibilidades de machucar a mão ou o pé. Algumas gotas de sangue ampliariam o efeito teatral. Seria o ápice da comédia. Não foi. Escapei são e salvo. Cansado, mas inteiro.

A primeira perda serviu de alerta. Algumas medidas de prevenção são necessárias. Vou comprar pratos novos.


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