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quinta-feira, 16 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXV)




Não quero transformar o meu dia a dia em um necrológio interminável. Não quero contar os mortos. Não quero saber das estatísticas, dos gráficos explicativos, das competições necropolíticas entre este e aquele país. Não quero chorar diariamente por escritores, músicos, artistas, parentes, amigos, conhecidos. Não quero ficar triste pela ausência de qualquer ser humano.

Não quero ler nos jornais as intrigas palacianas. Não quero perder tempo com as picuinhas que alimentam as deficiências emocionais de um psicopata. Não quero conhecer os admiradores do Romero Brito, essa trapaça colorida. Não quero ter notícias do nazismo de Roberto Alvin. Não quero ver Jesus na goiabeira. Não quero saber quanto custou os óculos fashion do Ministro do Meio Ambiente. Não quero ter conhecimento da ignorância daquele que tentou imitar o Gene Kelly. Não quero ter qualquer contato com essas pessoas. Elas me fazem mal.

Não quero rir das cenas de comédia pastelão que devem estar sendo encenadas nas casas de pais e mães defensores do homeschooling e que, neste momento, não sabem o que fazer para acalmar os filhos. Não quero pensar no quanto é dolorido ser professor em um país que jamais valorizou a atividade docente.

Não quero olhar para os teatros fechados. Não quero conhecer as histórias dos artistas que precisaram abandonar projetos. Não quero ser informado sobre as fake news que transformaram a Lei Rouanet em Frankensteim. Não quero perceber os cinemas fechados. Não quero ter ciência das estratégias das televisões (abertas e a cabo) para multiplicar os ganhos. Não quero desvalorizar o streaming, as lives, a troca de nudes. Não quero fingir que desconheço o poder sedutor da pornografia.


Não quero considerar o dano decorrente dos livros que deixarão de ser publicados. Não quero indagar quais livros tentarão interpretar essa força estranha que está nos sugando para o inferno. Não quero viver longe da poesia. Não quero ser impedido de ler contos e romances. Não quero perder a oportunidade de abrir e fechar livros e revistas. Não quero deixar de ler em voz alta. Não quero ficar sem ouvir os meus discos de jazz.

Não quero ter informações sobre atletas e artistas que flertam com o fascismo.  Não quero compactuar com esses sujeitos que esqueceram as suas origens e ostentam relógios de ouro. Não quero pensar em empresários ambiciosos e patrocínios milionários. Não quero qualquer relação com essa gente ordinária.

Não quero listar os produtos que estão em falta nos supermercados. Não quero ler medidas provisórias que retiram direitos dos trabalhadores. Não quero ignorar aqueles que não podem ou não querem ficar em casa. Não quero disfarçar que não estou ciente de que algumas pessoas moram na rua. Não quero omitir a violência doméstica e os crimes que ocorrem entre quatro paredes. Não quero esquecer a tragédia protagonizada pelas crianças que vendem doces nos semáforos. Não quero julgar aqueles que enganam a dor tomando outra dose de cachaça.

Não quero as previsões meteorológicas, astrológicas e econômicas. Não quero receber, (pelas redes sociais) mensagens otimistas, vídeos políticos, propagandas de roupas, propostas de cursos diversos. Não quero comprar o que não preciso.


Não quero perder uma tarde de sol. Não quero a insônia. Não quero ter medo. Não quero continuar em quarentena. Não quero o desleixo que é vestir calça de moletom e caminhar pelos cômodos do apartamento parecendo um zumbi.

Não quero.

Um comentário:

  1. Sinto-me próximo com esse diário. É tão bom ler Raul Arruda Filho!

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