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quarta-feira, 22 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXI)




Meu pai nasceu ontem. Por ontem quero dizer 21 de abril de 1932. Faleceu quando tinha 57 anos, em uma dessas manhãs plúmbeas de dezembro, quase garoando, o frio entrando nos ossos. Câncer. Nem morfina conseguia diminuir as dores. Os dois maços diários de Continental sem filtro e as incontáveis doses de conhaque Dreher contribuíram para esse desfecho. 

Eu estava na Prefeitura quando me avisaram. Queria continuar trabalhando – o chefe da repartição impediu, me mandou ir ao velório. Não derramei uma lágrima sequer. Fui ao enterro, no final da tarde, com o propósito de me despedir de um conhecido, alguém com quem não temos muita intimidade. Só percebi a extensão da perda alguns meses depois, quando, para usar uma metáfora fora de moda, encostei em algum fio desencapado. O colapso emocional durou algumas horas. Exercício de contrição tardio. A impossibilidade de recuperar os laços de sangue. Poderia dizer que superei a crise com terapia, remédios, aditivos químicos, exercícios físicos, adesão ao budismo, essas coisas todas que parecem propicias nas horas de desespero, fórmulas mágicas da modernidade, mas a verdade é que nada disso aconteceu. Enxuguei o rosto, deixei os fantasmas na escuridão, segui em frente.

Tenho poucas lembranças. A maioria da infância e da pré-adolescência. Depois disso, um imenso vazio. Seguimos por caminhos diferentes. Construímos distâncias.

Vejo-o dirigindo o Chevrolet. Vejo-o matando, a tiro de espingarda, o cachorro que contraiu raiva. Uma vez fomos para Morrinhos, lá na Coxilha Rica, e ele reclamou o tempo todo por ter que conduzir o jeep. Não nasci para dirigir caixa de fósforo, dizia com incontrolável repulsa. Vejo-o mil vezes acendendo o cigarro. Vejo-o batendo com cinta nos filhos. Vejo-o trazendo para casa, dentro de uma caixa de sapato, um gato amarelo recém-nascido e que foi batizado com nome enigmático: Babinót. Vejo-o brigando com minha mãe – os vizinhos chamando a polícia para acalmar a situação.

Quando as coisas se esfacelaram totalmente, ele não teve maturidade psíquica de juntar os pedaços que sobraram ou para perceber qual era a sua parcela de culpa naquilo tudo. Preferiu se retrair, fazer pose de marido abandonado. Aumentou as doses de álcool, buscou abrigo com um dos irmãos (que também era alcoólatra). Terminou tendo que viver na companhia da mãe – uma pessoa rancorosa (e que era, na falta de expressão mais adequada, detestada por mim e por meus irmãos).

O resto é decadência. Não vale recordar o horror.

Raramente ia visitá-lo – em casa ou no hospital. Uma das vezes fui a contragosto. Um amigo, médico, estava de plantão e me chamou para resolver detalhes de um projeto que estávamos desenvolvendo. Era uma armadilha. Quando percebi, estava diante daquele que um dia chamei de pai. Deitado em cama da enfermaria, quase irreconhecível, seus olhos anunciavam a morte. Não lembro o que conversamos, foi pouca coisa, nada muito significativo. Sequer houve aperto de mãos. Fugi daquele lugar o mais rápido possível.

Nas fotografias amareladas pelo tempo há outra pessoa. Não é aquele que conheci. 

A vida costuma acenar com possibilidades que nunca se concretizam.   

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