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terça-feira, 7 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XVI)





Foram uns dez minutos, no mínimo. A mosca estava presa no vidro da janela. Não consigo suportar esse tipo de cena. Com o auxílio de uma folha de papel, tentei ajudar. Era necessário encontrar um caminho para o mundo lá fora. Foi difícil. A mosca voava um pouco e depois voltava para o mesmo lugar, como se a vidraça estivesse oferecendo algum tipo de atração que está aquém da percepção humana. Em algum momento, talvez porque o vento se fez presente, a mosca conseguiu alcançar a amplidão do espaço exterior.

Para os budistas, que acreditam na reencarnação, as forma vivas são sagradas. Evitam, na medida do possível, a destruição da natureza. Aquele que “morreu” pode voltar ao mundo dos vivos na forma de planta, inseto ou qualquer outro animal. Não tenho conhecimento teológico para contestar ou reiterar esse tipo de dogma. E, mesmo que o tivesse, nunca me pareceu adequado discutir religião. Algumas pessoas acreditam na potência divina. Algumas pessoas desprezam as ligações com o espírito. A fé está conectada com a individualidade.  

Poderia ligar – metaforicamente – a história do inseto com o Covid-19. É um recurso banal, porém eficiente. O abismo kafkaniano (Há esperança – mas não para nós), composto por totalitarismo e nonsense, parece gritar à sensibilidade dos leitores do escritor tcheco. No espelho, cada indivíduo vê o reflexo das próprias angústias.



Prefiro olhar para outro lado.

Em O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, o oficial Giovanni Drogo, designado para servir no Forte Bastiani, próximo do deserto, acumula dias e noites de profundo tédio. As forças militares se mantêm em regime de prontidão. O inimigo pode atacar a qualquer instante. Urge estar preparado para qualquer possibilidade. Inclusive a mais assustadora: a ausência de ação. Diante da rotina, a tensão adquire valor crescente.

A quarentena, expressão máxima do imobilismo causado pelo Covid-19, assusta. O aprisionamento voluntário produz angústia – a sensação de inutilidade se torna constante. Momento em que não é possível negar a correção das palavras do enxadrista Savielly Tartakower, A ameaça é mais forte que a sua execução.




Muitos não serão afetados pelo vírus, mas pelo medo. Como se fossem simulacros do jornalista Raymond Rambert (A Peste, de Albert Camus), que estava ansioso para deixar Orã, procuram por trilhas escondidas, subornam guardas, fazem o que consideram necessário para obter a fuga. Querem alterar o destino – sem pensar nas consequências.

Fingir que tudo poderá voltar ao normal é ilusão. A redoma poderá ser removida, teremos a sensação imediata de que a crise foi superada. Mas, o mundo estará diferente. Muitas questões precisarão ser reavaliadas. Os destroços não poderão ser apagados da memoria – são os nossos suvenires do pesadelo.   

Volto à história da mosca. Após recuperar a liberdade, o inseto foi fazer, no mundo exterior, as coisas que lhe cabem fazem nos seus – aproximadamente – 25 dias de vida. Provavelmente não percebeu que ficar se debatendo na vidraça da janela foi um tempo perdido.   

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