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quinta-feira, 2 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XI)




Tenho dificuldades com as questões que envolvem a espacialidade. É comum tropeçar nos móveis, esbarrar nas paredes e nas pessoas. Fico angustiado com espaços reduzidos, embora não seja exatamente um claustrofóbico. Poderia consultar um médico. Poderia. O problema é que costumo – por algum mecanismo que não merece explicações – postergar tudo aquilo que pode me causar algum incomodo no futuro (seja próximo ou remoto).

Também sou distraído. Mas em grau menor. Nunca usei pares diferentes de sapato (ou de meias). Jamais sai de casa com camisa faltando botão. Sempre tirei os óculos antes do banho. Esse vexame de esquecer onde o carro está estacionado também não faz parte da minha história.

(parênteses necessário e urgente: em relação ao último item, convém esclarecer que eu não tenho carro, mas cometo pecados de igual proporção, como alertou um amigo, nunca consigo recordar o lugar onde está estacionado o veículo em que está me fornecendo a carona. Não bastasse, confundo marcas e modelos).

O meu problema sempre foi de outra (des)ordem: datas, nomes, rostos. Esqueço o dia de vencimento das contas, raramente me lembro dos aniversários (mãe, irmãos, sobrinhos, amigos). Sou um desastre na arte cavalheiresca das boas maneiras sociais e familiares. Quem me salva é a agenda do telefone celular, programada para avisar que o circo vai pegar fogo se algo não for feito em regime de urgência.




O vexame maior ocorre em relação ao nome das pessoas. É um problema sério para quem, durante muito tempo, trabalhou com jornalismo. No meio da entrevista... você olha para a vítima e não consegue lembrar se o sujeito se chama Joaquim ou Adalberto. É o horror.  Então, para tentar diminuir a agonia, é preciso improvisar e tirar da manga alguma palavra mágica: senhor, doutor, mestre,... E fingir que tudo está bem.  

Um exemplo clássico (e constrangedor) ocorreu quando encontrei alguém que estudou comigo. Fazia tempo que não o via. Por convenção, costumo tratar todo mundo pelo primeiro nome. Depois de conversar um pouco sobre os velhos tempos, me despedi. Abraços, Paulo! E fui embora. Coincidentemente, encontrei “Paulo” várias vezes depois disso. Estaria tudo bem, se ele não tivesse perdido a paciência: Meu nome é Júlio. Meu primo, que também estudou conosco, é que se chama Paulo. Então, não esqueça: eu sou o Júlio!

No supermercado, raramente levo uma lista do que devo comprar. Muitas vezes trago para casa produtos que não são necessários. E aqueles que deveria ter comprado... Resultado: nova visita ao templo do consumismo.  

Certa vez quase viajei para Florianópolis sem documentos, sem dinheiro. A carteira ficou em cima da mesa. Só percebi a trapalhada dentro do táxi. Felizmente, deu tempo para corrigir a desgraça.

Vivo caminhando nas nuvens, como diz a sabedoria popular. Mesmo assim, nem sempre é fácil conviver com essas calamidades, algumas humilhantes, outras apenas ridículas. Poderia relacionar mais umas trezentas, mas vou parar por aqui. Não há motivo para ampliar o desastre.




Estou lembrando essas trapalhadas porque, enquanto efetuava as tarefas diárias (lavar a louça, reunir o lixo, limpar o banheiro), ouvi uma canção na internet. Foi uma espécie de contágio (no bom sentido, claro). E que, como sempre, resultou em algum tipo de consequência. Dentro do banheiro, derrubei o balde d’água no chão, quase promovi uma inundação. O importante é que não perdi a pose e continuei cantando (muito desafinado): O acaso vai me proteger / Enquanto eu andar distraído.

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