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quarta-feira, 1 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (X)



O prédio está situado em uma avenida bastante movimentada. Duas pistas são divididas por um rio. Do lado de lá, tráfego intenso. Automóveis e motocicletas que se dirigem para o centro da cidade ou para um dos principais bairros. Na outra pista, a situação é mais calma. O fluxo do trânsito leva na direção de algumas áreas residenciais.

Como se trata de terreno plano (ou quase isso), quem pratica exercícios físicos costuma frequentar a região. Da janela do escritório é possível acompanhar parte da agitação.  Quer dizer, era. Com a ameaça de fim do mundo, o povo diminuiu a presença nas ruas. Sobraram apenas os atletas de ocasião que, sozinhos ou em grupo, correm na direção do nada com um entusiasmo que deixaria os maratonistas quenianos com inveja.  




Uma infinidade de personagens e situações: casal passeando com o(s) cachorro(s), ciclistas e suas roupas feias, homens de meia idade que usam as caminhadas como desculpa para tomar umas duas doses de uísque depois, mulheres de meia idade que se sentem ameaçadas por garotas na faixa dos vinte e poucos anos, rapaz que acompanha a namorada (possivelmente sonhando com outro tipo de exercício), namorada do rapaz (provavelmente pensando em se livrar do idiota o mais rápido possível), sujeito que acredita que caminhar pela avenida é uma espécie de desfile de moda (usa roupas de grife), pai e filho adolescente tentando criar algum tipo de laço afetivo, pai ensinando a filha a andar de bicicleta, quatro ou cinco amigas que resolveram caminhar juntas, homem que tomou o caminho errado e quase foi engolido pela multidão.  

Estou com saudades daquela senhora de roupas coloridas e com o peso, digamos, um pouco acima do recomendável. Lépida e faceira, caminhava todos os dias, no final da tarde, sempre conversando em voz alta com alguma amiga. 

Também era constante presença – mas no período da manhã – um senhor com aspecto de ex-fumante. Possivelmente ouviu do médico a ameaça definitiva: ou você faz algum tipo de exercício físico ou morre! Considerando a alternativa, o sujeito decidiu caminhar. Não há felicidade em seu olhar.  

Estou preocupado. Onde estão essas pessoas? Será que estão todas confinadas, esperando a crise passar? Ou mudaram hábitos e agora fazem algum tipo de ginástica dentro de casa? De forma complementar, podemos perguntar se as lojas que trabalham com equipamentos para academias domiciliares estão batendo metas e celebrando recordes de vendas? Não tenho respostas para essas perguntas e centenas de outras. O que sei é que, em momentos de crise, alguém sempre encontra uma maneira de transformar o sofrimento alheio em dinheiro. Dizem que isso se chama empreendedorismo, aproveitar as oportunidades, realizar o negócio, essas sutilezas semânticas que emolduram o capitalismo. Piratas e corsários também não tinham escrúpulos.



Cerca de um mês atrás, um casal de mochileiros ganhava alguns trocados com malabarismos na esquina da avenida. Jovens, magros, roupas de cores berrantes, falando espanhol – características que podem chamar a atenção dos xenófobos. Fico me perguntando se eles estão bem, se estão se alimentando com alguma frequência, se encontraram algum abrigo?

A cidade está quase deserta. O medo, monstro mitológico, está corroendo aqueles que não conseguem entender o significado da quarentena. O ovo da serpente pode eclodir a qualquer momento, seja como fenômeno messiânico, seja como totalitarismo político. A Idade Média é aqui – e agora.

(continuo em outro momento)

Um comentário:

  1. Realmente estamos diante da Idade Média Contemporânea. Fico curiosa em saber quando começará a fogueira e quem será vó perseguido. Gostei da leitura! Abraço!

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