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sexta-feira, 3 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CIII)


Em pé: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando Sabino,
José Carlos de Oliveira. Sentados: Vinicius de Moraes e Sergio Porto.
Foto de Paulo Garcez 

O Brasil é o país das crônicas – e dos cronistas. Em cada esquina do país alguém está pronto para colher, na fonte, as boas (e más) histórias que integram o cotidiano. Ignácio de Loyola Brandão costuma (ou costumava) atravessar São Paulo (de ônibus coletivo ou metrô) com caneta e caderneta de anotações, coletando narrativas – para depois transformá-las em literatura.

Nesse caminhar trôpego, alguns críticos rotulam a crônica como uma espécie de comentário datado sobre algum acontecimento – que, se não fosse pelo registro fatual, acabaria desaparecendo na sequência de eventos “maiores” que constituem a vida urbana. Em outras palavras, a crônica – uma forma híbrida de literatura e jornalismo –, é um gênero “menor” e só existe para preencher o espaço que não é utilizado com a notícia. Trocando em miúdos, um calhau, cujo futuro é o embrulhar o peixe (ou coisa pior) no dia seguinte à sua publicação. Em tempos de Internet, são páginas de blogs ou de sites e que raramente serão acessados uma semana após a publicação.  

A linguagem que a crônica utiliza para se comunicar com o leitor transita entre o relato coloquial e a prosa poética. Isso permite aventuras estilísticas que abrangem desde a compreensão do mundo através do particular até o escracho monumental. De fato, a crônica é aquele texto onde você pode soltar expressões como iabadabaduaiou Silvero caralho a quatro ou fala, amendoeira no meio da frase e ninguém vai reclamar do conteúdo – ao contrário, essas situações humanas, demasiadamente humanas, possibilitam ao leitor o reencontro com a ilusão, momento em que é possível acreditar que toda a sabedoria do mundo estava contida nas sagradas páginas do Almanaque Sadol (Biotônico Fontoura e Capivarol também valem).


Ivan Lessa

Noves fora zero, uma das delícias para quem gosta de se espichar no mundo, é ler boas histórias – inclusive como uma forma de combater a cara feia daqueles que desconhecem a sabedoria proposta por algum texto bonitinho, lido na manhã de domingo, entre o café ruim e o bocejo desajeitado.

Que tal começar com alguma crônica do Fernando Sabino? Não é preciso escolher, qualquer um dos seus livros está repleto de quero mais, o cara sabia das coisas e escrevia como se estivesse conversando com o leitor, aquela mistura de sabedoria e bom humor que só os gênios conseguem reunir.

Ou Aldir Blanc e Ivan Lessa? Aldir Blanc, náufrago de boleros e sambas-canções (Eu hoje me embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra lá, dois pra cá), fez questão de colocar na lâmina do microscópio social a verdadeira tragédia suburbana: churrasco no quintal, cerveja gelada, palavrões e a sadia sacanagem com a vítima que estiver mais próxima. E, óbvio, um imenso foda-se para o politicamente correto! Ivan Lessa é um pouco diferente: com um texto mais aristocrático, nunca negou as raízes de quem nasceu em berço de ouro e leu tudo antes dos vinte anos – na maturidade, olhando as ruínas, cospe sabedoria nos menos aquinhoados.


Sergio Porto ou Stanislaw Ponte Preta

Ou Antônio Maria e Stanislaw Ponte Preta? Nos textos dessa distinta dupla, as dores de corno são passageiras habituais do bonde que leva os cafundós do Judas até o lugar onde o diabo perdeu as botas. Nesse cenário fofo, não dá para evitar a parada obrigatória, algum boteco sórdido, onde, ao final da noite, muitos guerreiros tentam afogar as mágoas com martelinhos de pinga com mentruz, ou, se o sujeito ainda dispuser de alguma força, no corpo de alguma das certinhas do Lalau, verdadeiro bilhete de loteria premiado (aquele mesmo que tantas vezes ficou para trás, acenando promessas).

Também é possível ler alguma coisa do Luís Fernando Veríssimo, prato cheio para quem gosta de humor pasteurizado, revestido com o verniz intelectual pequeno-burguês, típico de quem - na infância - sempre teve dinheiro para completar o álbum de figurinhas. Pelo mesmo caminho segue um escritor de qualidade, apesar de faltar um pouco de condimento em sua prosa: Rubem Braga. Esbanjando uma lírica que sempre defendeu que o Rio de Janeiro é o umbigo do mundo, o ilustre cronista definitivamente desconhecia o que significa morar em palafita, andar de pés descalços por não ter dinheiro para comprar chinelo ou as delícias de roubar manga (como fez tantas vezes o Carlos Heitor Cony, que, guardadas as devidas proporções, é vinho de outra pipa, safra nobre, item de colecionador).

Na turma dos que não podem ser classificados em nenhuma categoria, exceto aquela que os designa, Machado de Assis ilumina o cenário com lampião de gás, bondes, fraques e sessões teatrais. O Império tinha charme (e usava essa característica para esconder as coisas más). Ninguém conseguiu produzir um retrato de época tão interessante quanto Machado de Assis.    

Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira,
Mário Quintana e Paulo Mendes Campos

Há outros cronistas. Claro que há. Um punhado de humoristas, um caminhão de trágicos. Uma seleção de craques poderia ser escalada assim: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, José Carlos de Oliveira, Roberto Drummond, Nelson Rodrigues, Lourenço Diaféria, João Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Millor Fernandes. No banco de reservas: Raul Drewnick, Maria Rita Kehl, João do Rio, Zuenir Ventura, Mário Prata, Marcelo Rubens Paiva, Martha Medeiros e Antônio Prata, entre tantos outros.

Por essas e outras, muitas outras, só nos resta lembrar Fernando Sabino, que, em momento ternurinha, parodiou um verso de Manuel Bandeira, e escreveu que queria que as suas crônicas fossem puras como um sorriso. Nunca me pareceu que estivesse pedindo algum absurdo.


Aldir Blanc


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