Páginas

sexta-feira, 24 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXIV)



A quarentena se transformou em período de hibernação? Abro a janela do escritório para confirmar que o mundo não congelou e que o tempo segue caminhando. Agasalhado pela luz do sol, encontro o antídoto contra a possibilidade (certa manhã, ao acordar de sonhos intranquilos) de me transformar no fantasma de Rip van Winkle.   

No conto de Washington Irving (1783-1859), para fugir da esposa rabugenta, o marido entra na floresta. Depois de vários eventos, resolve descansar por algum tempo. Ao acordar, 20 anos depois, encontra um mundo que não reconhece – e que não o reconhece.

Esse estranhamento parece se repetir na atualidade – o que havia anteriormente foi engolido pelas palavras vírus, doença, pandemia, quarentena, pânico. O progresso tecnológico se revelou insuficiente para entender os fatos. A empáfia mostrou o ridículo. A noção de que tudo era possível fracassou. O crepúsculo se instalou e a modernidade regrediu aos tempos da peste negra, na Idade Média. De forma trágica, 2020 será classificado na linha histórica como um interregno, um período vazio.  

O ser humano não consegue se reconhecer nesse espelho embaçado. Como anotou Albert Camus (1913-1960), a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. Presos em casa, os indivíduos constatam que a dor da solidão parece não ter fim. Nesse paradoxo, mesmo que a ciência apresente – em médio prazo – alguma solução para a crise, ninguém poderá negar que o que ontem se apresentava como ficção científica, hoje retrata uma metamorfose do abismo.

Santo padroeiro dos colapsos, Franz Kafka (1883-1924) poderia construir um novo castelo. Não aquele em que o homem é impedido de se aproximar, mil obstáculos a superar. Outro. Que não imitaria labirintos e não apresentaria insetos monstruosos. Talvez o modelo ideal para concretizar essa ideia seja o tenente Giovanni Drogo, aquele que fica olhando para o horizonte, linha que se mostra imutável. Dia após dia, tudo é igual no deserto (dos tártaros). Não há mudanças. Em algum momento, diante do tédio, o desespero pode se apresentar transversalmente no desejo de passear na barca de Caronte. Certamente, como manda o roteiro kafkaniano, esse lenitivo não será concedido.

Ao longe, como se fossem voyers, os escritores contemporâneos tudo farão para entender essa loucura. Seguindo a vocação de fornecer documentos de época (alguns falsificados), em algum momento aprisionarão a enfermidade em milhares de palavras (contos, crônicas, novelas, romances). Os escombros da memória projetarão (como nostalgia, como advertência) um tempo que desconhecia o medo. Mas, em movimento simultâneo, também serão (serão?) capazes de projetar outro tempo. Tempo em que a esperança não estará presa no fundo da caixa de Pandora.

Em condições normais, o inverno é substituído pela primavera.  


Nenhum comentário:

Postar um comentário