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sábado, 4 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CIV)



Quis aproveitar o sol de inverno. Depois de vários dias de frio, chuva, ciclone e demais intempéries climáticas, me pareceu boa ideia colocar uma cadeira na sacada. Repor a dose de vitamina D, ver carros deslizando pela avenida, adolescentes empinando bicicletas, homens e mulheres passeando com os cachorros. O vento era fraco e gelado   e pode ter sido uma das causas do resgate de lembranças quase esquecidas.

São imagens embaçadas, sem nitidez. Não sei exatamente quando aconteceram os piqueniques. Dois momentos distintos. Faz tanto tempo. Mais de cinquenta anos.

Aquele que está mais nítido na memória aconteceu em uma espécie de quermesse na Gruta de São Bom Jesus (Bairro Ipiranga). Não sei se tinha toalha xadrez, formigas, galinha com farofa, garrafas de cerveja, algum refrigerante para as crianças, esse conjunto de clichês que caracterizam a bagunça. Será que alguém estava vendendo rifas de bolo e/ou de churrasco? Barracas com jogos de argolas, tiro ao alvo e roleta estavam estrategicamente dispostas ao redor do santuário? Também não sei se houve missa ou algum tipo de cerimônia religiosa. O que lembro é mais trivial: minha mãe, sentada no gramado, gritando com os filhos, não faça isso, não faça aquilo, essas crianças vão me deixar louca!  

O outro episódio ocorreu no Guará (salvo engano, nos fundos do Bairro da Várzea). Alguns homens foram pescar, fui junto. Como estava atrapalhando, meu pai me levou de volta para o lugar onde estavam as mulheres e as crianças. Não consigo recordar quem participou. Além da minha família, provavelmente tios, primos, alguns amigos dos adultos. É possível que tenha garoado no final da tarde.

Na infância, território que percorremos com saudade, nunca é possível afirmar com exatidão que aconteceu aquilo que imaginamos ter acontecido. As pessoas que poderiam confirmar se esses fatos são reais ou inventados estão, como naqueles versos do Manuel Bandeira, dormindo profundamente.

Em algum momento, a vida urbana perdeu o interesse pelos piqueniques. Será que estou enganado? Talvez nem as escolas promovam esses encontros, que tiveram o seu esplendor em outras épocas. Com a multiplicação das atividades sociais e culturais, geradas pelo mundo virtual (e que se somam com a insegurança em algumas áreas da cidade), poucas pessoas pensam em fazer refeições ao ar livre – a exceção fica por conta daqueles que pregam a comunhão com a natureza. No passado, os piqueniques eram formas de celebrar os laços de amizade e, em alguns casos, podiam servir de ponto de partida para aventuras amorosas. Leitores de Jane Austen se lembrarão de várias dessas situações, particularmente a que acontece em Emma, cena que fornece outro andamento à narrativa.

Qual foi a consequência de recordar esses acontecimentos tão distantes? Com o prato no colo, almocei na sacada. Não foi um piquenique, mas fiz de conta que era.  


Um comentário:

  1. Que livro agradável e bonito pode ser a publicação desse diário. Excelente jornada.

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