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segunda-feira, 27 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXVII)


Adolescência. Óleo sobre tela, 1941. Salvador Dali.

Todo mundo sonha. Dizem. Das coisas alheias pouco sei – exceto o que me contam e o que leio. O que posso afirmar com segurança é que nos últimos tempos tenho dormido quase oito horas ininterruptas e em suave serenidade infantil. Raramente há interrupções no sono.  

Em outros tempos, tinha sonhos recorrentes com a família. Hello, darkness, my old friend / I’ve come to talk with you again. O eterno conjunto de desacertos que a vida nos presenteia. Em algum momento, talvez tenha apertado o parafuso frouxo (como dizia minha avó) e solucionado o problema. Nunca mais apareceram.

Também era comum a sensação do déjà vu, a ilusão de reconhecer um lugar em que nunca estivemos. Ao acordar, ficava tentando lembrar daquilo que parecia próximo e não era. Bizarro.

O surrealismo foi o movimento artístico que mais valorizou os sonhos. Anarquistas, eles acreditavam que a arte não deve ficar atrelada à lógica e à razão – cabe à imaginação ultrapassar essas barreiras e estar receptiva para todas as possibilidades da mente humana. Nas pinturas de Salvador Dali (1904-1989) e René Magritte (1898-1967) percebe-se o radicalismo desse posicionamento.  

Recentemente, sonhei que estava em sala de aula. Não consegui descobrir se estava lá como aluno ou professor. Era um daqueles dias de sol escaldante, todo mundo de bermuda e camiseta. Muita gente entrando e saindo da sala, conversas paralelas ensurdecendo o mundo. Pareceu-me que algum rock comportado dava o tom da trilha sonora. Sentado em uma carteira estava um ex-colega do segundo grau. Faz muito tempo que perdemos o contato e, salvo banalidades, nunca tivemos interesses convergentes. No sonho, ao contrário, parecia que éramos amigos íntimos. E o mais estranho, o tempo ainda não tinha produzido muitos estragos em nossos corpos. Éramos alegres e cabeludos. Tínhamos 16, 17 anos. Depois de trocar algumas palavras com ele e algumas pessoas que não conheço, deixei a sala, caminhei pelo corredor e... acordei.

Durante a manhã, procurei por alguma coerência nesse sonho. Não precisei ir longe. No ritmo da automedicação, conclui que não era caso de internamento psiquiátrico, tampouco havia motivo para marcar consulta com o doutor Sigmund – o bisbilhoteiro do inconsciente humano. Também lembrei que, em tempos longínquos, fiz uma disciplina de pós-graduação com o Sergio Medeiros (Onirismo e Nonsense). Foi uma bagunça. Alunos demais. Quem chegava atrasado não conseguia lugar para sentar. O ar condicionado não estava funcionando. As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e alguns limeriques. Acho que foi isso.

Posso estabelecer algum tipo de ligação entre essas aulas e o sonho? Sou da turma que acredita que nada acontece por acaso. Sempre há um fio solto dentro do labirinto e que raras vezes aponta para a saída. O usual costuma ser um convite para tomar chá com o Chapeleiro Louco (Mad Hatter) e a Lebre de Março (March Hare). Como ainda não descobri o que há de errado com os passeios oníricos – exceto, claro, os gritos da Rainha de Copas (que ordena, a todo instante, Cortem-lhe a cabeça) – quero continuar sonhando. Será pedir muito?


The blank signature. Óleo sobre tela, 1965. René Magritte. 


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