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quinta-feira, 23 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXIII)



Três dias e 379 páginas. Não sei se isso significa que li rápido demais ou devagar. Faz muito tempo que perdi esse tipo de parâmetro. Sou da turma da fruição, aqueles sujeitos que se preocupam com o prazer da leitura e deixam a velocidade para quem encontra nas estatísticas a razão para viver.

Alguns anos atrás, quando li, em espanhol, o romance O Clube de Leitura de Jane Austen (publicado no Brasil pela Editora Rocco), da Karen Jay Fowler, uma das cenas que mais me chamou a atenção foi aquela em que um dos personagens sugere a outro a leitura dos romances de Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018). Como defendo a tese de que um livro está ligado ao outro, fui buscar essas narrativas. A surpresa foi grande. Por dois motivos. O primeiro, muito pouco da obra de Le Guin está traduzida no Brasil. O segundo, A Mão Esquerda da Escuridão (Editora Aleph) é um livro magnífico. Talvez esse adjetivo seja insuficiente para qualificar o texto. Mas, isso é conversa para outro dia.

Também estão traduzidos no Brasil dois volumes do infanto-juvenil Ciclo Terramar (O Feiticeiro de Terramar e As Tumbas de Atuan – Editora Arqueiro) e, em edição mais recente, A Curva do Sonho (Editora Morro Branco). Alguns contos estão espalhados em diversas antologias, o que significa que o trabalho de garimpo pode ser exaustivo.

Ler Os Despossuídos (Editora Aleph) foi uma espécie de correção a uma das minhas falhas literárias. O livro ficou morando na estante por quase um ano. Aproveitei esse momento de pausa na correria do dia a dia e resolvi mergulhar no texto. Como ocorre nos romances de ficção científica, a descrição é um dos elementos importantes na construção da trama. Depois que o leitor consegue se situar no tempo e no espaço do enredo é que a ação propriamente dia se desenvolve. Dependendo da habilidade do escritor, isso pode ir longe.



Os Despossuídos está centrado em dois planetas gêmeos. Em determinado momento, uma parte da população de Urras imigrou para Anarres e construiu uma sociedade igualitária, onde os valores econômicos e o patrimônio não existem. Todos têm direito à alimentação, moradia, trabalho e serviços de saúde. Associações sindicais, através de reuniões e proposições, devem tentar solucionar os problemas coletivos.

Em Urras, é o contrário. Sociedade de consumo, baseada em valores do capital, divide-se em proprietários e empregados – e reprime violentamente qualquer infração que vise alterar esse projeto político-econômico.

No meio desse confronto de ideias e propostas, encontra-se Shevek, um físico teórico brilhante, morador de Anarres. Ele está trabalhando em um projeto complicado e que pode resultar em nova forma de transporte espacial. A questão fundamental está situada em um impasse: marginalizado em Anarres, muitas vezes precisando exercer trabalho braçal, Shevek descobre que o seu planeta não quer que ele desenvolva a teoria. Em contrapartida, Urras informa que tem interesse. O impedimento mais importante, nessa situação, é que, depois da imigração, nunca um habitante de Anarres esteve em Urras.

A típica situação do homem dividido entre o dever e a opressão do Estado encontra nesse romance uma boa construção narrativa. A viagem para Urras equivale a um despertar da consciência (qualquer semelhança com o “mito da caverna”, de Platão, não é mera coincidência). Ao entender que o idealismo não se sustenta como proposta de vida, Shevek cresce como individuo e intelectual.

No conflito entre Eros e Thánatos, o prazer se mostra mais forte. E essa é a grande proposição de Os Despossuídos.


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