Páginas

quinta-feira, 30 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXXX)


Foto: Dmitri Arruda

Sigo nas minhas rotinas de quarentena. Evito acumular louça suja na pia, passo um pano molhado no chão da cozinha, distribuo água sanitária no banheiro, peço comida pelo telefone, tomo banho duas vezes por dia, escrevo um pouco, leio sempre que possível, ouço jazz e MPB, durmo cerca de oito horas, e, para não perder o costume, compro alguns livros de vez em sempre.

Alguém pode alegar que as minhas energias estão concentradas em coisas miúdas. Concordo. A vida no isolamento social é isso mesmo, um conjunto de banalidades. Assim como a poesia, esses elementos são essenciais para manter a sanidade. Como complemento, gosto da monotonia, porque sempre há a possibilidade de mandar tudo para a Cochinchina (um eufemismo que minha mãe usava nos momentos de cólera). A estabilidade é a porta de entrada para as contravenções – e isso me anima. Ao mesmo tempo, estimula o postergar – que é um verbo muito ao meu gosto.

Meu plano para 2020 não poderia ser mais prosaico: quero continuar vivendo. Se a meia dúzia de pessoas de quem gosto seguir esse projeto, ficarei ainda mais contente.

(Parêntese necessário: tenho afeto por muito mais do que seis pessoas, mas, para manter as características do personagem que interpreto, convém evitar ser confundido com alguém simpático e gentil).

Não tenho (e não quero ter) alcance para consertar (concertar, também) o mundo com ações épicas, gestos grandiosos e batalhas contra moinhos de vento. O tempo dos heróis ficou preso nas páginas de Os Três Mosqueteiros (Alexandre Dumas) e de Scaramouche (Rafael Sabatini), entre outros clássicos literários. O que me restou como costume ordinário foi o uso da ironia e, aqui e ali, algumas piadas de gosto duvidoso. Não é muito, admito. É a parte que me cabe neste latifúndio.

Hoje, no final da manhã, depois de alguns dias de chuva e frio, o sol apareceu no horizonte com timidez e desfaçatez. Uma ou duas horas foi o tempo com que me iludi. O vento se encarregou de levar o calor embora e tingiu a cidade – mais uma vez – de cinza (essa cor melancólica). Na sacada do apartamento, caneca de chá na mão, fiquei pensando em quanto é bom morar em um vilarejo do interior de um estado do interior, lugar onde a natureza costuma ser um espetáculo ininterrupto. Evidentemente, não vou escrever poemas elegíacos sobre esse tema (deus me livre!), mas a sensação estética provoca prazer substantivo.

É isso. As trivialidades possuem o aspecto de bilhete premiado da loteria. Tenho sorte.  

 



Nenhum comentário:

Postar um comentário