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quinta-feira, 16 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXVI)



Minhas ligações com o sagrado são profanas. No principio, era o verbo rezar que definia parte da história da minha família. A Igreja Católica Apostólica Romana, representada pelo quadro do Sagrado Coração de Jesus na parede da sala, unia todos em torno de algo comum. O terço, as novenas, as procissões e a missa semanal eram partes do ritual.

Em algum momento da infância fiquei doente. Não tenho a mínima ideia do que aconteceu. Minha mãe fez promessa a São Bom Jesus de Iguape. Alguma coisa relacionada com levar algumas mechas do meu cabelo para a sala de ex-votos na Basílica de Iguape, no litoral paulista. Eu devia ter uns seis anos. Fui com meu pai. Creio que ficamos quase uma semana na estrada e usamos os mais variados meios de transporte (caminhão, ônibus, carroça e trem). Trouxemos várias pedrinhas de lá. Era costume colocar os calhaus dentro de garrafas d’água. Diziam que beber desse líquido era bom para curar várias doenças e prevenir outras tantas.

Os primeiros livros que li foram hagiografias (presente de uma das avós). Fiz curso de catecismo. Depois, Primeira Comunhão. Segui os protocolos da tradicional família católica brasileira, apesar de nunca ter roubado vinho da sacristia. No entanto, convém esclarecer, sempre detestei me confessar. Estou convicto de que os meus pecados não são para ser divididos com estranhos – se, em algum momento, tiver interesse em genuflexórios, vou procurar um psicanalista.

Na adolescência, me afastei do catolicismo. As urgências da carne foram mais fortes do que o asceticismo. Jamais me arrependi dessa decisão. Até porque o gozo compensou qualquer sentimento de culpa que, por ventura, pudesse surgir no horizonte. Em 1976, uma de minhas irmãs, ao ver que algo está fora de prumo, me sugeriu uma espécie de estrada para Damasco, ou seja, me inscreveu em uma Jornada (que era uma espécie de doutrinação ideológica do catolicismo). O truque não funcionou, inclusive porque, como complemento, naquelas alturas do campeonato eu já tinha conseguido matar (no sentido freudiano) meu pai – ou seja, não havia mais lugar para qualquer deus na minha vida.



Na sequência, Cronos devorou os dias e Baco se estabeleceu como guru da esbórnia. Apesar de o Parnaso estar distante dos olhos gulosos, aqui e ali acenaram em meu favor uma ou duas ninfas – nem sempre as ideais, mas eu também não era exatamente um bilhete premiado da loteria. Comi a ambrosia e me embriaguei na loucura que somente os corpos conseguem compreender. Foi bom.

Muito tempo depois, como acontece com todos aqueles que permitem as dúvidas, procurei por algum tipo de alternativa. Por diversos motivos, que não cabem esclarecer neste momento, flertei com o budismo. Na teoria, uma beleza; na prática, uma tristeza. Faltaram satoris, sobraram confusões. A arte cavalheiresca do arqueiro zen não funcionou comigo. O vulcão que carrego nas entranhas não simpatizou com meditações, mantras e elevação espiritual. Mas, como Buda não deixa seus filhos desprotegidos, de vez em quando surge pequenas recaídas, umas vontades de ser mais sereno, menos colérico. Na medida do possível, costumo salvar aranhas, formigas, besouros e borboletas, defendo a conservação da natureza e acredito que, em algum momento, o mal será punido.   

Enfim, no que se refere à religião, convivo com a confusão, com as rupturas e as heresias.   



P.S.: Minha mãe é adepta das religiões de matriz africana e do espiritismo. Mas, isso é conversa para outro dia.


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