Páginas

sexta-feira, 17 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXVII)


O Triunfo da Morte, óleo sobre tela, 1562
(Pieter Bruegel, o velho, 1525-1569)

Quando comecei o Diário da Quarentena, em 23 de março, imaginei que, no máximo, escreveria umas 30 ou 40 crônicas (média de 500 palavras cada) e, depois, a vida voltaria ao ritmo cambaleante que a caracteriza. Ou seja, o mundo se adaptaria (como sempre) aos pequenos colapsos diários.  

A ingenuidade custa caro. Este é o texto nº 117 e a contabilidade da necropolítica parece não ter fim. Todos os dias se tornaram um único dia, um longo feriado ou a monotonia repetitiva de Vladimir e Estragon – que, a todo instante, sussurra no ouvido que ninguém está a salvo.

A metáfora da situação excepcional encontra em A Peste, de Albert Camus (1913-1960), a sua mais completa tradução: Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram as pessoas igualmente desprevenidas.

Nas páginas de Peste e Cólera, de Patrick Deville (n. 1957), surge outro elemento importante: A grande peste da Idade Média, a peste negra, causou vinte e cinco milhões de mortes. Metade da população da Europa foi dizimada. Nenhuma guerra jamais provocou tamanha hecatombe. A amplitude do flagelo é metafísica, revela a ira divina, o Castigo.

O otimismo se irmana com a loucura, o negacionismo grita mais alto e tenta calar a razão – que, apesar de seus pontos cegos, ainda é a melhor maneira de tentar desenhar essa miragem que chamam de futuro.

A utopia se transformou em distopia. Similar aos romances catastróficos de ficção científica, o inimigo não pode ser identificado – é um ente invisível, uma ameaça amorfa – e está revestido de medo.      

Somente o bom senso conseguirá impedir o surgimento de uma das pragas mais nefastas da convulsão social, os curandeiros. Esses comerciantes do pânico não possuem escrúpulos e querem vender a esperança como se fosse mercadoria. Oferecendo poções coloridas e milagres avulsos, esboçam um paraíso que não pode ser entregue – porque inexistente.  

Mas, como se não bastasse esse tipo de alucinação, a crise tem outros vetores. A quarentena se converteu em sinônimo de solidão: famílias estão separadas, amigos trocaram abraços por mensagens de whatsapp, o surgimento de novas relações amorosas ficou mais difícil, as pessoas se distanciaram, sobrou apenas a sombra projetada nas redes sociais – espelho em que Narciso delineia a própria beleza. A angústia está adquirindo uma consistência que dá para cortar com estilete. Aumentou o número de consultas on line com psicólogos. Também houve um acréscimo no consumo de alguns fármacos e diversos estimulantes – a religião daqueles que acreditam que os paraísos artificiais conseguirão diminuir a dor.

O comércio perdeu parte de sua potência e precisou se adaptar ao virtual – que nem sempre funciona e que se mostra incapaz de superar o trabalho presencial. O índice de desemprego fomentou o subemprego e onerou a Previdência Social. Simultaneamente, o Estado revela incompetência para fornecer alguma solução (mesmo que seja paliativa).

Ao longe, felizes, os Cavaleiros do Apocalipse se preparam para a colheita – que promete bater recordes.   


Nenhum comentário:

Postar um comentário