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domingo, 12 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXII)



Da mesa quatro dava para ver o movimento das pessoas no Calçadão. Era, digamos assim, a mesa da diretoria. No final de tarde das sextas-feiras, logo depois de sair da repartição, era nesse ponto estratégico que (sozinho ou com algum amigo) costumava tomar uma ou duas garrafas de Antarctica Pilsen, a cerveja da moda naqueles tempos, final dos anos 80.

Alguma coisa acontece em meu coração quando me lembro do bar Marrocos – que foi, durante muito tempo, uma espécie de templo pagão para aqueles que tinham sede. As ampolas de pão líquido sendo conduzidas por um garçom ansioso, Flecha ou Ligeirinho, não tenho certeza do apelido (sei que muitas outras pessoas trabalharam lá, mas só consigo me lembrar dele). Claro que eram servidos outros líquidos alcoólicos, mas a cerveja era o carro-chefe para a nossa turma e as garrafas eram esvaziadas com rapidez.     

Heitor costumava administrar o estabelecimento como se fosse uma réplica da Guerra de Tróia. Algo como meu bar, minhas regras. De uma maneira muito particular, essa rigidez não passava da página três, porque, como diz a canção, No peito dos desafinados / Também bate um coração, e ele raramente poupava os clientes daquelas brincadeiras que o divertiam tanto (chamadas de um telefone desligado, o avental pornográfico, as piadas quase sem graça). Cada uma dessas pequenas transgressões exigia que os copos fossem reabastecidos, estímulos para que o riso se pronunciasse com intensidade.      

Lá era possível comer o melhor filé à parmegiana da cidade. Nos sábados, era de praxe começar o expediente pelas onze horas da manhã, a turma chegava aos poucos, o “pessoal da casa” se amontoava no balcão, como se estivessem de passagem – o que era mentira, mas fazia parte da brincadeira. Muitos almoçavam depois das duas da tarde – e eram amaldiçoados pelas cozinheiras, que queriam ir para casa mais cedo. Enquanto isso, as garrafas de cerveja pareciam estar furadas, o líquido desaparecia rapidamente e não raro, ao final da tarde, alguns clientes iam embora ligeiramente embriagadíssimos (como diria Nereu Goss, que não era um frequentador assíduo)


Foto enviada por Bada Castro.

Não sei se a história do Marrocos terminou em uma quarta-feira, como naquela crônica célebre do Paulo Mendes Campos, onde o mestre declara que O bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares perdem suas arestas e se sublimam. O que posso afirmar é que no momento em que as portas do Marrocos foram fechadas para todo o sempre a cidade perdeu alguns de seus personagens mais ilustres (que se dispersaram em botecos menores e desapareceram na poeira do tempo). Não vou citar nomes, posso esquecer alguém (que, de onde estiver, céu ou inferno, pode vir puxar meu pé em uma dessas noites de inverno e eu não vou gostar).

Foi no Marrocos, em conversas agitadas, uma algaravia sem fim, que “ajudei a derrubar governos”, que encontrei solução para estabelecer a paz mundial e que fiz alguns amigos – porque como escreveu o cronista acima citado, a verdade é que só os bêbados aturam os bêbados; e só os sóbrios aturam os sóbrios. Foi lá que, em alguns momentos, fui feliz.




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