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quarta-feira, 1 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CI)



Frio siberiano. Não encontro outra maneira de definir o clima dentro do apartamento e lá fora. Os termômetros marcaram, durante o dia, uma média de 7° C na área urbana.  Estou me sentindo (guardadas as devidas proporções) um personagem de Doutor Jivago (Boris Leonidovich Pastenak, 1890-1960), Arquipélago Gulag (Alexander Isayevich Solzhenitsyn, 1919-2008) ou então do instigante Parque Gorki (Martin Cruz Smith, n. 1942), livros que li em invernos passados e que me possibilitaram a ilusão de que há lugares mais gelados do que aqui.

Em alguns contos e novelas de Isaac Emmanuilovich Babel (1894-1940), Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904), Alexandr Ivanovitch Kuprin (1870- 1938) e Vladimir Galaktionovich Korolenko (1853–1921), o inverno é um personagem muito importante, talvez sem ele não possa ser possível realizar a proposta narrativa, visto que o frio une as ações e os personagens.    

Ao lado dos russos, os escandinavos (re)produzem as mais baixas temperaturas da literatura mundial. Mas, ao contrário das paisagens em que a neve, a gripe, as doenças respiratórias e a umidade se destacam, os romances policiais de Henning Georg Mankell (1948-2015) e Jo Nesbø (n. 1960) produzem calor narrativo capaz de derreter a calota polar. O mesmo se pode dizer da trilogia Millennium (Karl Stig-Erland “Stieg” Larsson, 1954-2004), onde a personagem Lisbeth Salander incendeia o texto, aquecendo a monotonia do leitor que espera por alguma coisa romântica e recebe um choque térmico assustador.



Estou lendo Sobre os Ossos dos Mortos, da polonesa Olga Tokarczuk, Prêmio Nobel de Literatura, 2019. Nas cenas iniciais, o leitor fica congelado. A forma com que a narradora, Janina Dusheiko (que lembra em espirito Elizabeth Costello, personagem de John Maxwell Coetzee), descreve os centímetros de neve ao redor de sua casa causa aflição em quem está acostumado com o verão. Todos os personagens usam casacos, sobretudos, botas impermeáveis – vestimentas que fazem com que pareçam estar se movendo em câmera lenta. Um deles, no entanto, se distingue por vestir uma samarra, que é uma espécie de túnica feita com a pele e a lã da ovelha (pensei em vários pelegos costurados, mas não é isso que mostram as fotos no Google).  

O inverno envolve tudo aqui de forma encantadora com um algodão branco e encurta o dia, diz a narradora no início do romance. Muitas páginas depois, o idealismo desaparece quando há uma descrição do caminhar na neve: nossas pernas ficaram entaladas num lamaçal semilíquido e a chuva tentava entrar debaixo do capuz e esbofeteava nossos rostos repetidamente. Não é uma visão agradável.

No livro, eles bebem café e vodka (a polonesa deve ser um santo remédio contra o frio, a gripe e a vida). O que não sei é se essas bebidas conseguem diminuir a sensação de solidão que acompanha a neve e a chuva. Provavelmente, não. De qualquer forma, o que conta é a luta contra o tempo adverso, esses vendavais que irrompem inesperadamente na vida de cada personagem.

Minha avó dizia que é necessário sobreviver ao inverno para poder desfrutar da primavera e do verão – que são estruturas climáticas que se afastam da tristeza e da morte.


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