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segunda-feira, 6 de julho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CVI)



Adoro drama contado em boteco. A frase é do Aldir Blanc, mas queria que fosse minha. Não consigo disfarçar o gozo sádico quando o sujeito começa a contar as desventuras amorosas, sejam elas reais ou imaginárias.

Evitei usar a palavra alemã schadenfreude no parágrafo acima. Provavelmente precisaria abrir parênteses para explicar o significado. Então, para evitar maiores complicações prefiro gastar um parágrafo inteiro. A expressão designa, de maneira singela, aquela situação em os mortais sentem prazer e/ou alegria com a desgraça alheia. É uma espécie de bem feito!, mas com o charme europeu.

Quando o indivíduo entra no bar gritando eu sou corno!, e eu vi duas dessas situações, praticamente está exigindo que a plateia preste atenção no espetáculo. Deve ter algo interessante (e miserável) para contar. Mesmo a mais reles das narrativas, aquela que o marido chega em casa e encontra a digníssima esposa (namorada, companheira, amante) praticando o bem-bom com um estranho, tem os seus atrativos.

O distinto público quer saber como foi que isso aconteceu e, se não for pedir demais, qual foi a reação dos envolvidos na trama. Olhos faíscam de curiosidade, pois sabem que quanto mais desesperada está a vítima, mais saborosa fica a história.

O sujeito, enxugando o suor do rosto, começa lembrando as coisas que fez em favor da traidora, o ressentimento batendo forte e atropelando qualquer razoabilidade. Para dar tempero à desgraça, ele relata várias intimidades do casal. Os expectadores não acreditam no que estão ouvindo, mas quem pode impedir a inundação depois que a represa arrebentou? Na confusão, o traído também lembra alguns acontecimentos domésticos (independente de terem contribuído para o desfecho fatal ou não), como a compra do conjunto de panelas que custou uma fortuna e aquela vez que foi forçado a ir à festa de casamento da sobrinha da sobrinha de uma ex-colega do colegial. Aliás, os tempos de escola são um capítulo a parte, o queixoso amplia o martírio ao recordar que poderia ter casado com fulana, mas não, preferiu ser infeliz ao lado da pérfida messalina (sim, nesses momentos o vocabulário se apresenta em trajes de gala, embora a plateia atenta imagine que essas duas palavras são obscenidades cabeludas).

Quando a narrativa se aproxima do desfecho, as pessoas ansiosas para conhecer os detalhes sórdidos, invariavelmente o traído tem uma crise emocional e interrompe a narrativa. Olhando para a parede, as lágrimas escorrendo em cascata, não consegue continuar. Nesse instante, alguém oferece um martelinho de cachaça para o desgraçado. Desafortunadamente, o remédio não se mostra suficiente para destravar a voz acusadora. O esforço de chegar até ali abalou as estruturas psíquicas do miserável. Está reduzido a um farrapo humano. O público dispersa.  

Nesse clima de desapontamento cabe lembrar, pela milionésima vez, a história do Heládio, o aviador. Para evitar confusões desnecessárias, convém esclarecer que o sujeito era aviador de receitas médicas. O único “avião” que entra nessa história é Cláudia, a sua esposa.

Em uma tarde de agosto de algum ano que ninguém lembra mais, Heládio precisou buscar alguns documentos em casa. Dois segundos após abrir a porta, ele (que tinha alguns problemas de visão, mas não era surdo) ouviu tortuosos acordes da sinfonia do amor. Pois é, Claudinha estava se divertindo com outro!

Será que essa história vai terminar manchada de sangue?, perguntará o bisbilhoteiro. Nada disso! Heládio derrubou (de propósito) duas cadeiras na cozinha. Foi um aviso para que o casal fizesse um rápido intervalo na festinha. O amante, que estava em trajes de Adão, naquela situação nada pode fazer para evitar o clichê, escondeu-se embaixo da cama.  

Heládio pegou o envelope com os documentos, beijou a testa da esposa, e disse:

– Você parece estar muito cansada, meu amor. Continue deitada, você precisa recuperar as energias.

E foi embora. O amante, que tinha energia de sobra, voltou para cima da cama e...

Dizem que Heládio continua apaixonado por Cláudia. O amante, também.   


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