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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

NOS BRAÇOS VIRIS DE MINHA ESPOSA (algumas anotações sobre um conto de Mia Couto)

Às vezes, penso: no fundo, eu tenho medo de mulher. E você não tem? Tem, bem que eu sei, comenta o narrador do conto Joãotónio, no enquanto, incluído em Estórias Abensonhadas, escrito pelo moçambicano Mia Couto (nascido António Emílio Leite Couto, em Beira, no dia 5 de Julho de 1955).

Contada em linguagem que muitas vezes dialoga com os neologismos de Guimarães Rosa, escondendo em formulário epistolográfico o que lhe cabe revelar gradativamente, essa história segue o compasso de tango e valsa como em pródigo e épico caso de amor, ocorrência que foge de classificação ordinária.

Narrativa em que o espanto e a falta do gozo se misturam com o alumbramento, parece abordar o velho desencontro entre homens e mulheres, mas é em outra estação que o passageiro do ônibus do desejo quer desembarcar.

Deusa a exigir altar de devoção, Maria Zeitona me apareceu intacta e intacteável. Dela se soltava a suspeita da brasa sob a cinza. Seu corpo falava pelos olhos. E que olhos cristalindos! Casamos, instantâneos. Eu queria sofrer a promessa daquele fogo. Queria e ficou no querer. Nada se cumpriu parecido com o que havia sido imaginado. Nos folguedos diários, realizados entre lençóis e gemidos, faltava sabor. Ou saber. Para surpresa de Joãotónio, Maria Zeitona cavalgava ignorância no conhecimento de temperos e doçuras. Mais que isso, inspirava insuportável impressão de desgostar do esporte. Maria Zeitona era fria, calafrígida! Eu fazia amores era como se fosse com uma defunta.

Joãotónio, frustrado por não ter conseguido extrair as labaredas em que sonhava se queimar, Zeitona era lenha molhada: o fogo lhe desvalia, e antes que o desespero batesse na porta e o convidasse ao sair à procura do que não conseguia encontrar na própria alcova, encaminhou a questão para rumo inesperado: contratou famosa e rabuda prostituta para escolarizar a amada nas delícias que recheiam as artes amatórias. As duas mulheres concordam com o destrato. A esposa a cumprir estágio com uma dessas profissionais de roça e destroca. Assim ela aprenderia a enrodilhar lençóis. Enfim, ela cometeria o pecado imortal. A outra, mediante algum dinheiro, garantiu que não economizaria lições sobre o ofício. Para finalizar o contrato, afirmou que, quando Maria Zeitona voltasse, eu haveria tanto de despentear com ela que até o colchão reclamaria urgentes remendos.

Depois de algumas semanas, Maria Zenaide voltou. Voltou diferente. Diferente? Muito diferente. Vinha, de facto, mudada. Seus modos eram demasiados estranhos mas não da maneira que eu esperava. Caramba, mano, até ponho vergonha nesta confissão: Zeitoninha vinha com jeitos de homem! A mulher que lá foi, transformou−se em outra, senhora (em alguns momentos, senhor) de outros procederes, outros poderes, um enxoval de desconhecidas acrobacias. Joãotónio pagou por cartilha de alfabetização e recebeu biblioteca. Diante de tamanho desassossego, como faltava−lhe estrutura psicológica para folhear tantos volumes, nada mais restou senão sentir o espinho na carne, uma luxúria que assombrava, ela é que me empurrava a deitar, acredite, ela é que me desapertava, me ia roubando os ares. Eu ficava para ali sem nenhuma iniciativa, executado e mandado como se fosse rapariga iniciada. Invertidos os papeis e as posições, aflição foi o mínimo que Joãotónio sentiu ao perceber que a corda estava espremendo as partes que diferenciam o macho da fêmea.

O problema, mano, é o seguinte: eu até gosto! Me custa admitir, tanto que hesito em escrever. Mas a verdade é que me agrada esta nova condição, sendo−me dada a passiva idade, o lugar de baixo, a vergonha e o receio.

Entre quatro paredes vale tudo, diz a masculina sabedoria popular, sorriso de satisfação escorrendo pelo canto da boca como se fosse sumo de mastigada fruta madura, dessas que se apanham ao pé da árvore, no meio da tarde. Joãotónio é que não conseguiu entender o que estava se passando, sentiu medo em avançar sinal, muitos prejuízos em caso de colisão. E se ficasse viciado nas novas formas de dispor do corpo? Faria o quê? Imerso nessas dúvidas, dívidas produzidas por amor e sexo, perdido ao não mais sentir o chão onde se movimentava com tanta firmeza e certeza antes de Maria Zeitona fazer pós−graduação naquelas loucuras, é que ele escreve a carta.

Mas agora, no momento que lhe escrevo, nem mais me apetece explicações. Quero desraciocinar. Em cada dia não espero senão a noite, as brandas tempestades em que eu sou Joãotónio e Joanatónia, masculina e feminino, nos braços viris de minha esposa. Por enquanto, mano, ainda sou Joãotónio. Me vou despedindo, vagarinhoso, do meu verdadeiro nome.




Um comentário:

  1. O Mia sempre nos encanta com sua maneira mais que encantada de narrar histórias e desmarar as almas, a sua e a de seus personagens. Perfeito.

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