A banca de revistas ambiciona ser livraria. Enquanto esse milagre não ocorre, vai vendendo publicações populares, especializadas em bobagens sobre os próximos capítulos das novelas televisivas. Nada muito diferente do andamento geral do país. Em algumas estantes, best−sellers estão à disposição de quem ambiciona uma (inde)leve(l) camada de verniz intelectual. Também estão à venda, em separado, alguns volumes menos glamorosos. Foi lá que encontrei um exemplar de O Homem da Quitinete de Marfim. Míseros R$ 14, 90. Melhor do que isso só um sebo paulista (próximo da esquina entre a Ipiranga e a São João) que vendia livros por quilo, isso nos distantes anos 80 do século passado – quando por lá tentei morar, interessado em gastar um dinheirinho que recebi de herança. Ainda tenho um exemplar de Malagueta, Perus e Bacanaço (João Antonio) a me lembrar de episódicos episódios daqueles dias em que alternei visitas a lugares pouco recomendáveis e shows de jazz.
Os livros do Marcelo não frequentam minhas estantes. Foi o que constatei, logo que cheguei ao apartamento. Estranho. Tinha um exemplar de O Herói Devolvido. Tinha. Aparentemente, se perdeu em um desses desacertos que a vida resolve aprontar com a gente. Só encontrei o Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia. Pouco. Muito pouco. Cadê Bangalô ou O Azul do Filho Morto ou Joana a Contragosto?
Encontro nas estantes Capão Pecado (Ferréz) e Ao Som do Mar e a Luz do Céu Profundo (Nelson Motta) − que são livros ruins até não querer mais. Diante desse assombro, cabe perguntar: porque não possuo os livros do Marcelo Mirisola, que – qualitativamente − escreve muito melhor? Mistérios, mistérios. Será que declarar a posse de um exemplar de Pornografia Pessoal, obra-prima de um dos autores favoritos de Marcelo, Nilo Oliveira, diminui o meu crime? Provavelmente não. Azar. Meu − claro.
Desconhecia as crônicas que integram O Homem da Quitinete de Marfim. Quase todas escritas para um site da AOL. São muito engraçadas. Como, aliás, compete ao mau humor. O livro é garantia de muitas gargalhadas. Enfim, que a ata do condomínio registre o desatino: gostei de O Homem da Quitinete de Marfim. Sim, gostei - apesar de algumas crônicas precisarem daquilo que os modernosos chamam de up date (o livro é 2007 e há textos de 2004).
Marcelo é um daqueles caras que adoram usar metralhadora giratória. Sem se preocupar muito com danos colaterais, engata uma segunda, acelera e... foda−se. Cadáveres estendidos no chão iluminam a sua alegria. Poucos possuem coragem para embarcar nesse voo kamicase.
De qualquer maneira, as pedradas que Marcelo jogou no São Paulo Fashion Week e no Festival de Gramado mostram o quanto é afiada a pontaria do escrevinhador. Humor corrosivo atemporal, desses que só alcançam a plenitude na dramaturgia confessional (cenário a media luz, onde o autor usa e abusa de um poético e patético eu lírico, perturbado e perturbador). Confusões muito distantes dos critérios de inclusão cordial que adornam o panorama literário brasileiro. E isso significa que, ao tocar fogo na festa, Marcelo solta um monte de porradas contra a superficialidade de alguns eventos culturais, locais que confundem arte com acontecimento turístico, a vaidade borboleteando esplendorosa na passarela do inútil.
Também há algumas reflexões sobre a literatura. Sem o uso da didática educacional, usando palavrões e exemplos ambíguos, muitas vezes beirando a obscenidade, Marcelo não perdoa os medíocres: quando cometo o ato de juntar uma sílaba com a outra, penso em hecatombes, apocalipses, catedrais de ouro (...) e penso também, nos picaretas que publicam livros exotericos e de auto−ajuda, penso no Jô Soares acendendo charutos no Roda−viva (...) e que o Paulo Coelho é diretamente responsável e devia ser indiciado criminalmente (por vender milhões de livros) junto com dona Zibia Gasparetto.... Esses excessos de ternura, poemas subversivos e corruptores, resultam em assombrosa síntese: [o] Abismo [é] que é [a] salvação.
Nos textos em que lava roupa suja em público (desentendimentos com Ademir Assunção e Ivana Arruda Leite) ou em que se desmancha em elogios (Dos Nervos, Meninos de Kichute, Junichiro Tanizaki, Ricardo Lísias, Juliano Garcia Pessanha), a pegada continua forte, exageradamente passional. Estilo? Ou jogo de cena? Sei lá. Pouco importa. A ideia é mostrar uma das portas de saída do mundinho Barrichelo em que estamos vivendo – a escolha é pessoal, sair ou ficar?
O segundo (des)encontro ocorreu quando abri o exemplar de setembro da revista Cult. Sim, eu sou um daqueles que gostam de ler Cult! Marcelo está lá, contando uma viagem que fez a Montevidéu, na República Oriental del Uruguay. A passagem em que relata a quase aquisição de uma múmia, em um leilão, é antológica. Hilária. Genial. Os analfabetos funcionais, travestidos de escritores, esses mesmos que comparecem a todas as FLIPs da vida, devem estar se mordendo de inveja.
Realmente Mirisola é digno de ser lido neste mundo cada vez mais afunilado de porcaria e de pseudo-críticos. Essa do Uruguay é genial, além de ser 'portunholesca".
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