Tour de force narrativo, falso romance de espionagem, exercício excessivo de metaficção – são muitas as possibilidades para adjetivar Serena, romance de Ian McEwan. Tentando abranger uma parte do terreno instável onde a política e a literatura se encontram, as 380 páginas do livro estão conectadas com as (cada vez mais raras) estruturas ficcionais que culminam em desfechos surpreendentes.
Com o olhar voltado para o passado, década de 70 do século XX, no auge da Guerra Fria e da contracultura, Serena Frome (pronuncia−se Frum), alinhando os fatos em ordem cronológica, com linguagem simples e clara, sem omitir detalhes, relata, em primeira pessoa, a própria história. Filha de um bispo anglicano e recém−formada em matemática em Cambridge, apesar de ter interesses literários, Serena ingressa de maneira desajeitada no MI5 (um dos segmentos de segurança e contra−inteligência do Estado Britânico). Depois de algum tempo como funcionária burocrática subalterna, recebe ordens para participar de uma operação de recrutamento. Disfarçada de funcionária de uma fundação que distribui bolsas literárias, consegue cooptar o escritor Thomas Healy para lutar pelos valores democráticos (que raramente são valiosos e democráticos − se alguma coisa pode ser assim designada).
Em tese, emulando o estilo de George Orwell, Thomas Healy deveria escrever panfletos contra o socialismo e o comunismo. No entanto, na medida em que o tempo vai escorrendo pela ampulheta narrativa, ocorrem vários desvios de função. O escritor não se mostra domesticado o suficiente para atender os interesses de quem o está pagando. Escreve vários contos sobre desacertos afetivos e uma distopia sobre a devastação humana (imitando J. G. Ballard). Ganhar um prêmio literário não melhora a situação.
Para mostrar a produção literária, a narradora, em exercício surpreendente de metaficção, espalha fragmentos dos textos ao longo da narrativa. Desinteressada de discussões sobre estilo ou inovações formais, sua percepção está ligada com a empatia pessoal. Ou gosta ou não gosta. Então, quando comenta (com alguma crueldade) as narrativas escritas por Healy, o faz baseada em valores pouco racionais. Ela não sabe distinguir um escritor do outro. Eis o descompasso e a confirmação literária: fiel ao texto que está narrando, Serena foge das complicações: Eu disse que não gostava de truques, eu gostava da vida que eu conhecia, recriada no papel. Ele disse que não era possível recriar a vida no papel sem truques.
A situação se complica quando Thomas e Serena iniciam um relacionamento amoroso. Como acontece eventualmente, a felicidade dispara o gatilho do rancor. Um colega de Serena, visivelmente apaixonado, julgando−se traído, resolve sabotar a operação e deixa vazar algumas informações para a imprensa. O escândalo estampado nas primeiras páginas dos tablóides coloca um freio nos objetivos ideológicos. O casal se separa.
O fim da narrativa somente se torna público 40 anos depois, quando Serena publica as suas memórias e, espelhando um tempo muito complicado da história mundial, revela que o destino de algumas pessoas é o de ser manipulado pelo sistema ou por pretensos amigos. É a carta de Thomas, no último capítulo do romance, que estabelece o arremate – e a decepção. Ao contrário da realidade, a cor que a ficção reflete na vida dos outros está repleta de surpresas.
Junto com Martin Amis e Hanif Kureishi, Ian McEwan é, provavelmente, um dos escritores ingleses mais criativos. Publicou dois livros de contos e mais de dez romances. Os mais conhecidos são: Amsterdam (1998), Reparação (2001), Sábado (2005) e Na Praia (2007). Amsterdam recebeu o Brooker Prize de 1998.
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