A história da arte sempre se alimentou de pequenos escândalos, que resultam em grandes confusões. De Michelangelo a Jackson Pollock, de Amadeus Mozart a Cole Porter, de Buster Keaton a Peter Greenaway, de Homero a James Joyce, independente da qualidade da obra artística, o que a marcará como diferente das demais – e, por isso mesmo, com maior número de admiradores e inimigos (leia−se público) – é a intensidade da polêmica que causou no momento em que foi apresentada.
Como grande parte da inteligentzia adora usar esse tipo de estratégia (também conhecida como síndrome do holofote), a regra geral passou a ser o uso de inovações (efeitos especiais, por exemplo) e temas polêmicos para obter o sucesso a qualquer preço. Todos estão cientes de que um bom marketing, independente de ser contra ou a favor, garante futuro e dinheiro.
No final do século passado, o filme Romance (Romance X. Dir. Catherine Breillart, 1999) obteve 15 minutos de fama. Infelizmente, pelos motivos errados. Apresentado como pornográfico, o filme teve sessões concorridas em 2000, no Festival do Cinema Francês, que teve edições em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O mais significativo é que Romance − assim como alguns outros filmes, inclusive o excelente Nove canções (9 Songs. Dir. Michael Winterbottom, 2004) − não é pornográfico. Embora pareça. Motivos para tal confusão não faltam. A curiosa presença de Rocco Sifreddi, astro de centenas de filmes de sexo explícito, é um bom motivo para colocar o filme sob suspeita. Mas, convenhamos, suspeita é uma palavra tola diante da cena em que o garanhão italiano revela todo o seu, digamos, potencial artístico. São oito minutos (segundo os tarados que cronometraram) de sexo explícito.
E, como se não bastasse, o Romance coleciona outras delicadezas de igual quilate (felação, sadomasoquismo, estupro, etc.). É um prato cheio – para quem gosta deste tipo de iguarias.
Apesar disso tudo, Romance não pode, não deve, ser considerado um filme pornográfico. Por quê? Simples, não é um filme sobre sexo – embora tenha sexo, o que, convenhamos, é muito diferente.
Na modernidade não há mais lugar para aquelas metáforas pretensamente ingênuas, que eram usadas no início do cinema hollywoodiano: o quarto com duas camas; o casal entrando no quarto; a porta que se fecha lentamente; a câmara, como se fosse uma extensão de nossa curiosidade, focada no exato instante em que, através da fresta da porta, alguém apaga a luz lá dentro. Na platéia, o público dava uma piscadinha marota, demonstrando que havia entendido as sutilezas do desejo.
Na vida real não é assim. Diante da encruzilhada, os teóricos costumam perguntar: o cinema precisa ficar reduzido ao artificial? Mais do que depressa, respondem: não. Apoiados no pensamento de alguns diretores contemporâneos, principalmente europeus, defendem a tese de que o cinema, ou melhor, um entre os diversos tipos de cinema, deve estar comprometido com a realidade de tal forma que seja possível obter o grau zero de irrealidade (mesmo que, paradoxalmente, esses momentos possam parecer reais demais).
Romance é um filme triste. Desses que muitos espectadores dirão que é chato, insuportavelmente chato. Estão errados. O brasileiro médio está (muito mal) acostumado com o ritmo do cinema estadunidense (muita ação, pouco sentimento).
Romance procura outro andamento narrativo e aposta no tom intimista para retratar o desencontro amoroso. Paul (Sagamore Stevenin) e Marie (Caroline Ducey) estão em crise: Paul não mais deseja sexualmente Marie. Não é somente isso: há poucos sentimentos unindo o casal, falta um entender o que o outro quer. Quando conversam, as frases são desconexas, sem sentido, sem amor – assim como a relação que eles vivem. Frustrada, Marie procura outros homens. No entanto, esses encontros são insuficientes para resolver os problemas que a afligem.
Em Romance, as cenas de sexo explícito são uma forma de expressar o quanto a vida pode ser deprimente quando não se possui objetivos definidos. Esse desconforto, expresso nas atitudes dos personagens e visível nos olhos dos espectadores, parece real, como a história de alguém que conhecemos (e que, claro, muitas vezes mimetiza a nossa).
O desfecho da trama é complicadíssimo e daria um bom ensaio, desses que analisam misoginia, delírios feministas e sub−psicanálise. Breillat, com o nítido propósito de embolar o meio de campo, adota um final de características literárias. Marie fica grávida. Paul (que talvez seja o pai da criança) morre. No velho estilo viúva alegre, Marie recupera a alegria de viver.
Romance é um filme provocativo, desses que colocam o espectador contra a parede. As cenas de sexo explícito são tão agressivas que perdem a função considerada principal: excitar. O efeito que o filme causa é outro: assustar. Ninguém está preparado para ir ao cinema (ou assistir um DVD) e ver certas intimidades – que, o conservadorismo burguês gostaria de guardar debaixo do tapete, junto com outras sujeiras do cotidiano. Há também, como contraponto, a ilusão romântica de que as crises foram feitas para ser superadas e, lá pela metade do filme, não faltará espectador que aposte que, depois de 95 minutos (tempo de duração do filme), tudo voltará aos eixos. A mão firme de Catherine Breillat não deixa isso acontecer. O cinema europeu, felizmente, tem outra estética.
P. S: Este texto, com ligeiras modificações, foi publicado originalmente no jornal A Notícia (Joinville, SC, 13/02/2000, p. C6).
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