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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

MÁRCIO CAMARGO COSTA: UM ANO DE AUSÊNCIA

Durante alguns anos, pelo menos três vezes por semana, almocei com Marcio Camargo Costa. No espaço de uma hora, uma hora e meia, ocupávamos mesa no restaurante do Grande Hotel. No início da refeição, queríamos resolver todos os problemas do mundo. O ímpeto diminuía com o passar do tempo. Durante a sobremesa já estávamos domesticados. Mesmo assim, exercitávamos − sempre que possível − a nobre arte de falar mal do governo. Ele muito mais do que eu. Como convém aos inconformados, fazia parte de sua índole reclamar de tudo e de todos.

Márcio era engenheiro agrônomo. Tinha especialização em reprodução animal, feito em Caen (França) e Mestrado em Zoologia (UFRGS). Intelectual com boa formação humanística, conhecia quase todos os clássicos. E não se constrangia em deixar que isso transparecesse em seus contos. Misturando referências sofisticadas com a linguagem chula dos habitantes rurais do Planalto Catarinense, as coletâneas O Gaudério de Cambajuva (Florianópolis: FCC Edições/Jornal O Estado, 1986), A Caudilha de Lages (Florianópolis: Lunardelli, 1987) e Qüeras (Florianópolis: Editora da UFSC/Letras Contemporâneas, 1994), além do folheto Adeodato (Florianópolis: Edições Sanfona, 1985), constituem a parte mais significativa da produção literária de um escritor pouco conhecido – embora fosse muito talentoso. Também gravou, em edição limitada, uma coletânea musical: Márcio Camargo Costa, composições.

Nos últimos meses, em situações e circunstâncias diferentes, lembrei dele diversas vezes. Provavelmente foi dessa maneira tosca que o meu inconsciente resolveu reverenciar a memória do amigo. Passado um ano de seu falecimento, quero compartilhar duas dessas recordações.

Depois de muito protelar, resolvi limpar parte dos livros. Confesso que não é a tarefa que mais me agrada. Munido com um pedaço de flanela e um pincel de cerdas macias, fui à luta. Ou melhor, fui tirar o pó. Centenas de livros espalhados pelo chão. Reproduzindo cena de romance do século XIX, uma folha de papel caiu de um dos volumes. Um bilhete.

Márcio sempre teve problemas financeiros. Certa ocasião, em 2004, quando a situação ficou complicada, fiz uma sugestão tola. Em tom de brincadeira, propus que vendesse a biblioteca. Garanti que compraria uma parte. Ele engoliu em seco a ofensa. Talvez porque soubesse que eu também estava quebrado e que toda aquela conversa era esdrúxula. Menos de um mês depois, ele me devolveu uma coletânea de poemas que me havia tomado emprestado. Junto, como uma espécie de revide à agressão, mandou−me um recado por escrito:

Caro Don Raul

 

Por obra do acaso ou, ainda melhor, das coincidências de que fala Sartre, o certo é que, ao chegar em casa (hoje, 12:30, 02/05/04), tive uma gratíssima surpresa (algo assim como a máscara sigilosa que preside a poesia de Silvina Ocampo). Simplesmente, o crédito de um generoso numerário havido há algum tempo, por serviços de assessoria rural (em Barretos, SP) e bloqueado por motivos de inventário. O que me faz discordar de Juan José Saer que afirma que vivemos em uma sociedade que aceita mal a criação artística. Assim volto à tona, para desespero de meus "tradittori amici". Bem, aproveitando o feliz ensejo, apraz−me sobremaneira devolver teu livro, ao mesmo tempo em que agradeço, olimpicamente (é preciso ir incorporando esse espírito, como diria Pai Bodum da Popular) tua politicamente incorreta "solidariedade". Aliás, sobejamente evidenciada quando de tua paquidermicamente sutil oferta de, digamos, compra de minha invendável Biblioteca, que quase convive com a de Alexandria, eis que tem origem (a minha) em meus tataravôs. O que me faz concordar com o Mestre Ernesto Sábato que, do alto de seus sábios 90 e tantos, decretou que esse Mundo é um horror. Concordo, data máxima vênia da vossa das letras que, em breve, impávida, obrará impune. Alelurdia!!!

Um pérfido abraço,

Márcio


Aceitei calado o puxão de orelha. Era justo. Eu tinha feito por merecer

Alguns meses atrás, o José Carlos Arruda (um ilustre parente distante) me perguntou sobre como localizar uma cópia de Adeodato, um longo poema sobre um dos personagens mais emblemáticos da Guerra do Contestado. Eu tenho um exemplar, respondi de imediato – embora não tivesse a mínima idéia de onde ele se encontrava. Mais uma vez, armado dos instrumentos necessários, tentei colocar ordem na bagunça das estantes. E isso significa que foram horas de suor, dores nas costas e dispersão. Qualquer livro carrega centenas de referências. Sentado no chão da sala, como se estivesse brincando com um novelo de lã, fui puxando o fio da memória e me perdendo em divagações literárias. Em alguns momentos esqueci o que estava procurando. Por fim, cansado, concluí que o texto do Márcio não estava em lugar algum.

Um segundo antes de ligar o chuveiro, lembrei que havia separado diversos documentos em um envelope, junto com exemplares da Revista Sul (presente de inigualável Nereu Goss). Talvez Adeodato lá estivesse. Estava. Porém, em amarelado estado de conservação. Uma cópia digital impedirá que ele se perca na poeira que nos reserva a eternidade (Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris - diz o texto bíblico).

Nas mãos, o bilhete e o folheto (ferramentas da carpintaria literária). Na memória, as muitas conversas intermináveis que tivemos. E a sensação de que esse tipo de lembrança só aumenta a saudade.

3 comentários:

  1. Raul, fiz uma busca gúglica para reler teu texto sobre o falecimento do Márcio Camargo Costa, que li pela primeira vez assim que entrou no ar, no ano passado. Terminada a releitura, vim aqui ver o que havia de mais recente no blog - e era justamente um novo texto sobre o Márcio (aliás, esse bilhete dele, sozinho, tem mais valor do que, somados, todos os vazios discursos dos políticos locais nos últimos 15 anos).

    Aproveitei a coincidência (que é também conhecida como Deus, segundo um notório e centenário defunto) pra vir aqui deixar um cumprimento pelo material que você produz no blog. Eu e você jamais trocamos palavra, mas sempre fui teu leitor n'O Momento e nos sempre ricos textos para o Anexo, do A Notícia. Você tem livro novo na praça? Está escrevendo com regularidade para algum jornal? Professa literatura nas universidades da cidade-continente (das Lagens, por supuesto)? Um abraço. Patrick Cruz (lageano degredado em Brasília)

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  2. Rapaz... Taí um encontro que mereço presenciar: Raul e Patrick!

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  3. Muito bom Raul! Eu como fã e amigo do Marcio fico feliz por esta e outras postagens que acompanho. Abraço e continue!

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