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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

MILLENNIUM, O FILME

Se eu pudesse, casava com ela, disse um dos espectadores um pouco antes de começar a sessão. Estava se referindo a Lisbeth Salander − a garota com a tatuagem do dragão. Provavelmente, o mundo está cheio de gente que pensa igual. Salander é uma espécie de sonho de consumo da comunidade alternativa: anarquistas, roqueiros, punks, nerds, hackers, "natiurébas", intelectuais−de−fim−de–semana, hippies tardios, a fauna toda. Ah, não é possível esquecer, os fascistas também a querem (por motivos diferentes, é claro).

Essa legião de fãs provavelmente aumentou depois da nova versão cinematográfica de Os Homens que Não Amavam as mulheres. Não satisfeita que o sueco Mænd der hader kvinder (Dir. Niels Arden Oplev, 2009) tivesse tentado destruir o romance escrito por Stieg Larsson, a indústria cinematográfica estadunidense e inglesa também quis cometer o crime. E conseguiu. Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (título original: The Girl With a Dragon Tattoo. Dir. David Fincher, 2011) não é exatamente um fracasso, mas está muito longe de ser um filme a ser lembrado daqui a dois anos.

Quem leu as 522 páginas do texto não deve ter gostado da adaptação. Se cinema é imagem em ação, a parte literária sempre fica empobrecida quando o roteiro "come" milhares de pormenores. No caso do romance de Stieg Larsson, que não recebeu o necessário desbaste antes de ser publicado, todos os detalhes são fundamentais.

Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres é um filme cheio de elipses, de sobressaltos, de "furos" bastante significativos. Um dos pormenores a se destacar se refere ao encontro de Mikael com Harriet Vanger na Austrália – e que não ocorre no filme. Mais uma prova de que a limitação do cinema comercial (que não consegue desenvolver narrativas com mais de duas horas e meia de duração) e a impossibilidade da adaptação literal implicam – necessariamente − em mutilação literária.

Outro ponto de discórdia, agora no plano cinematográfico propriamente dito, está no ator escolhido para interpretar Mikael Blomkvist. O inglês (ex−James Bond) Daniel Craig é um desastre. O cara parece estar engessado. Falta−lhe o necessário physique du role, como se dizia antigamente, quando os critérios para definir o talento cênico eram outros – e bem menos cínicos.

Em compensação, Rooney Mara consegue captar a essência dark de Lisbeth Salander: magérrima, estatura baixa, nunca olhando de frente para o interlocutor, faminta sexual, pesquisadora incansável, fanática por equipamentos eletrônicos. A personagem está identificada na beleza bruta do uniforme transgressor (piercings, tatuagens, botas, roupas pretas e folgadas). Provavelmente, muitos dos admiradores de Lisbeth Salander, ao vê−la ganhar vida na tela, ficaram excitados.

No conjunto, o filme parece estar picotado. Muitas das imagens e idéias não fazem sentido. Entre dezenas de cenas que desapareceram entre o livro e o filme, um dos elementos decisivos para resolver o primeiro mistério (a "morte" de Harriet) é uma fotografia. O encadeamento narrativo fica prejudicado nesse trecho porque todo esse processo de raciocínio está acelerado. A forma com que Mikael constrói uma hipótese através da seqüência fotográfica no computador é atordoante. Com um pouco mais de paciência, talvez o entendimento ficasse mais fácil. É um daqueles casos em que menos não significa mais.

Quanto ao segundo mistério (o caso Wennerström e a "expropriação" das contas bancárias na Suíça), coitado do espectador. A solução para tamanha confusão é simples: comprar o livro e ler. Não será no filme que essa parte da narrativa terá lógica.

Stieg Larsson, o autor da trilogia Millennium, morreu em 2004, logo depois de entregar ao seu editor os originais dos livros que constituem a trilogia. Foi vítima de um ataque cardíaco. Se vivo estivesse, depois de ver The Girl With a Dragon Tattoo, talvez precisasse ser conduzido ao hospital, antecipando o colapso fatal. Nenhum escritor merece ver uma adaptação ruim de seus livros. Caso escapasse de um dano maior, Stieg Larsson, no mínimo, "morreria de vergonha".

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