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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

OS OUTROS – NARRATIVA ARGENTINA CONTEMPORÂNEA

Costumamos esconder a ignorância atrás dos rótulos. Por exemplo, para negar o poder e a qualidade da literatura produzida em Uruguai, Paraguai, Equador, Venezuela, Colômbia, Bolívia, Peru, Argentina, Chile, Suriname, Guiana Francesa e Guiana Inglesa, frequentemente usamos o título genérico sul−americana.

Reunir escritores tão diversos como Julio Ramón Ribeyro e Daniel Alarcón, Mempo Giardinelli e Osvaldo Soriano, Felisberto Hernández e Juan Carlos Onetti, José Donoso e Alberto Fuguet em um "balaio de gatos", significa elaborar um constructo ideológico capaz de negar o acesso às diferenças, à alteridade.

Parte desse engano, o caso argentino, adquire visibilidade na coletânea Os outros – narrativa argentina contemporânea, organizada pelo escritor e psicanalista argentino Luis Gusmán. O volume apresenta 27 contos praticamente desconhecidos do público brasileiro. As exceções são Martin Kohan e Alan Pauls – nomes reconhecidos pelo imaginário literário brasileiro. O texto escrito por Sergio Bizzio (Cinismo) também não é estranho: serviu de base para o roteiro de XXY (Dir. Lucía Puenzo, 2007), filme vencedor da Semana de Crítica do Festival Internacional de Cinema de Cannes.

Os escritores argentinos contemporâneos precisam sobreviver à sombra deixada por Jorge Luis Borges. Diante de tamanha herança, uma encruzilhada se estabelece. Ou seguir o caminho trilhado pelo Mestre ou abrir nova estrada. Poucos possuem o espírito de combate dos engenheiros rodoviários. Ao mesmo tempo, ninguém quer ser acusado de ser imitador. Tamanho conflito deságua em constantes tentativas de reler, ritualizar, reatualizar, dissolver e esquecer o passado. Nem sempre essas incursões ao tragicômico fabular resultam em experiências bem−sucedidas. Inclusive porque as fraturas múltiplas e conflitantes espelham os destroços da história política, social e cultural.

Não bastasse Borges, outros nomes também pesam sobre os ombros daqueles que decidem fazer da escrita uma forma de conviver com os próprios fantasmas. Entre Julio Cortázar, Juan José Saer, Roberto Arlt, Macedonio Fernández, Manuel Puig e Ricardo Piglia, uma avalanche está pronta para soterrar vitimas e culpados.

A antologia de Luis Gusmán não quer seguir um caminho particular. Tampouco quer repetir formulas. E nesse fazer o que é possível, faz o que é necessário – apesar dos tropeços (inevitáveis nesse tipo de trabalho). O fato é que, além de fornecer visibilidade para a literatura argentina, alguns contos estão muito acima de outros.

O escolhido (C. E. Feiling) surpreende o leitor. As três cenas que o compõe parecem estar desconectadas até o parágrafo final, onde o horror se revela. Impressionante "tour de force" narrativo.

Em Exótica (Ana Kazumi Stahl), a narrativa se fixa no eterno descompasso entre o imaginário e o real. No embate cultural, decidir pelo novo muitas vezes significa enfrentar a decepção.

O cerco (Martin Kohan) é uma alegoria muito bem construída, sem se reportar diretamente aos governos autoritários. Ao leitor cabe a decisão de encontrar os necessários paralelos ou de lê-la como se fosse uma fábula de inspiração kafkaniana.

A pele de cavalo (Ricardo Zelarrayán) parece contar algumas aventuras picarescas, mas subitamente se desloca para o inesperado. Esse andamento, ao contrário da dispersão, fornece unidade ao desencontro.

Há outros contos igualmente interessantes. Muitos deles margeando a literatura intimista, o "eu" se pronunciando com intensidade. Há também exemplos da pesquisa formal, o monólogo interior manifesto como ferramenta da enunciação que tangencia a poética. Apesar das questões políticas não se apresentarem de forma visceral, elas também estão presentes em todo o livro. A opressão possui inúmeras faces e sempre está armando emboscadas para os ingênuos.

Depois de Os outros – narrativa argentina contemporânea, o leitor se torna cúmplice dessa literatura que promete recompensar o incômodo com alguns prazeres − como se fosse alguém que vai nos revelando, lentamente, segredos agradavelmente excitantes.

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