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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O MAPA E O TERRITÓRIO

A humanidade, às vezes, é estranha (...) mas infelizmente era quase sempre no gênero estranho e repugnante, raramente no gênero estranho e admirável, afirma − em tom pouco amigável − o narrador do romance O Mapa e o Território, de Michel Houellebecq, o eterno e incorrigível enfant terrible da literatura francesa.

Engenheiro agrônomo, nascido na ilha de Réunion (Oceano Índico), Michel Houellebecq, nascido Michel Thomas, publicou, em 1997, Extensão do Domínio da Luta, livro que lhe garantiu uma legião de inimigos, pois expôs algumas fraturas da sociedade francesa com realismo cru. Quem o detestava, ganhou muito mais motivos com a misoginia explicita de Partículas Elementares (1998). No entanto, a fama definitiva somente ocorreu quando publicou Plataforma (2001) − uma narrativa politicamente incorreta que, em ritmo de metralhadora giratória, denuncia inúmeras questões simultaneamente. Abrangendo alvos dispares como a imoralidade financeira, o turismo sexual, o islamismo, a cultura pop e o neoliberalismo, Houellebecq tentou pulverizar algumas certezas sociais. Embora não tenha conseguido esse objetivo, causou consideráveis estragos. Em 2005 seu nome emoldurou as manchetes dos jornais duas vezes. A primeira, quando trocou de editora na França. Foi uma das transações mais valiosas da história do mercado editorial europeu: cerca de um milhão de euros. A segunda, com a publicação, pela nova editora, de A Possibilidade de uma Ilha, um romance estranho, onde temas como a clonagem e as descrições sexuais se confundem com o sofrimento físico e mental. Ganhou seu primeiro Goncourt, principal prêmio da literatura francesa, em 2010, com O Mapa e o Território.

Prosa descritiva que escorre limpidamente pela pagina como se fosse um manancial d’água, O Mapa e o Território narra com grande riqueza de detalhes a instabilidade econômica e estética do mundo das artes plásticas. Na sociedade do espetáculo (onde o consumo e a valorização circunstancial de determinados artistas estão intimamente ligados com a ascensão burguesa), em lugar de propor inovações temáticas ou técnicas, alguns artista adotam as ferramentas de marketing para agregar valor a cada uma das peças que produzem. São as regras do capitalismo predatório que elevam a cotação (e o preço) das fotografias, pinturas a óleo e instalações de vídeo−arte produzidas por Jed Martin, o protagonista.

Jed é um homem infeliz. Misantropo, a morte iminente de seu pai (arquiteto aposentado) e o funcionamento de um boiler são os últimos lastros de humanidade que o ligam ao mundo. Artista plástico consagrado desde que realizou uma serie de fotografias sobre uma coleção de mapas Michelin, soube manter a privacidade – evitando a super−exposição e o desgaste.

Alguns anos depois, se tornou milionário com um conjunto de pinturas a óleo sobre profissões simples. Para escrever o texto do catálogo convida um importante escritor francês: Michel Houellebecq. O narrador do romance descreve o célebre e controverso literato de maneira pouco bondosa: bêbado, desleixado, agressivo, desapegado às emoções humanas. Não é uma imagem agradável. Como pagamento pelo escrito, Jed imortaliza o escritor em uma tela que, depois da exposição, é avaliada em 750 mil euros. Esse episódio é o gancho narrativo para a terceira parte do romance, onde Houellebecq é assassinado de forma cruel.

Assim, o romance de costumes que, em alguns momentos lembrava o polêmico Plataforma (principalmente na crítica beirando o niilismo que faz a um grupo de pessoas que sufoca suas carências − afetivas, sociais, econômicas − adquirindo quantidades industriais de artigos supérfluos em que, em geral, não há melhoria técnica ou funcional evidentes; subsiste a exigência da novidade em estado puro), se transforma em narrativa policial. Essa transição não é o melhor momento do romance, pois parece desviar a linearidade que estava sendo projetada nas 250 páginas anteriores.

Seguindo uma fórmula imbatível no romance francês (misturar referências intelectuais e impertinência, temas pouco usuais e crítica social), O Mapa e o Território não economiza sarcasmo, ironia e depreciação dos valores burgueses. De qualquer forma, essa postura não foi muito bem recebida pela sociedade francesa, que se mostrou reticente em aceitar uma narrativa que cita nominalmente (e nem sempre de forma elogiosa) algumas marcas comerciais, lugares e personalidades reais como elementos integrantes do texto. No caso comercial, puro preconceito – e ignorância. O estadunidense Brett Easton Ellis já havia usado desse expediente (de forma muito mais agressiva em Psicopata Americano, de 1991, e Glamorama, de 1998). Entre os franceses, Lolita Pille nunca economizou na citação de marcas comerciais, como se pode ver em Hell Paris − 75016, publicado em 2003. Quanto às personalidades (o próprio Houellebecq, o escritor Frédéric Beigbeder, Jean−Pierre Pernaut e dezenas de celebridades menores), provavelmente os homenageados, como se estivessem colaborando com algum filme, não fizeram restrições em ser coadjuvantes em algumas cenas. Afinal, como reconhece o narrador do romance, Um escritor deve ter algum conhecimento da vida ou pelo menos fingir.

Terminada a leitura das bem escritas 398 páginas de O Mapa e o Território, mortos praticamente todos os personagens, inclusive o protagonista, talvez todo o enredo possa ser sintetizado em um parágrafo: Foi assim que Jed Martin se despediu de uma existência a qual nunca aderira totalmente. Imagens lhe voltavam agora e, curiosamente, embora sua vida erótica não tivesse tido nada de excepcional, tratava−se sobretudo de mulheres. Geneviève , e a infeliz Olga perseguiam−no em seus sonhos. Voltou−lhe até mesmo a lembrança de Marthe Taillefer, que lhe revelara o desejo, numa sacada de Port−Grimaud, no momento em que, soltando seu sutiã Lejaby, desnudara os seios. Na época, ela tinha 15 anos e ele, 13. Naquela mesma noite, masturbara−se no banheiro do apartamento funcional alugado pelo pai para os vigias do canteiro de obras e admirara−se ao sentir tanto prazer com aquilo. voltaram−lhe outras lembranças de seios macios, línguas ágeis, vaginas estreitas. Vamos, ele não tivera uma vida ruim.

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