Em uma entrevista concedida à Paris Review, em 1956, William Cuthbert Faulkner (1897−1962) disse que Um escritor precisa de três coisas, experiência, observação e imaginação, sendo que duas dessas, às vezes uma, podem suprir a falta das outras. Comigo, uma história começa com uma idéia ou memória ou imagem mental. Escrever uma história é apenas uma questão de ir construindo esse momento, de explicar por que aconteceu ou o que provocou a seguir. Um escritor está sempre tentando criar pessoas verossímeis em situações comoventes ou críveis, da maneira mais comovente possível. É claro que deve usar como uma de suas ferramentas o ambiente que conhece.
As seis narrativas que compõem a coletânea Lance Mortal (Knight's Gambit) seguem item por item as regras propostas por Faulkner. Ao mesmo tempo, como um bônus, a clássica alegação de que Faulkner é um escritor difícil não encontra justificativa, exceto no último conto, o mais bem elaborado. Para não perder o costume, essa história foi escrita no velho estilo das frases que se equivalem aos elementos de um colar, uma palavra depois da outra, encadeadas para − muitas vezes − proporem sentidos inesperados. Assim, o pensamento construído por um narrador impessoal, em terceira pessoa, se estende pela página, imitando um rio que corre para o mar e que, tão logo desaparece do alcance do olhar, se perde no horizonte. Para o leitor comum é viagem tortuosa, em alguns momentos lembrando as dificuldades de leitura encontradas em romances como Enquanto Agonizo (As I Lay Dying) ou O Som e a Fúria (The Sound and the Fury). Para o leitor mais treinado, menos assustado com as ilusões narrativas, ler os textos de Faulkner lembra música orquestral, o diálogo simultâneo de vários instrumentos com a beleza.
Nos cinco primeiros contos não há nada disso. São tão lineares que poderiam ter sido escritas por algum outro escritor, desses que apostam no regionalismo como estratégia narrativa – felizmente, há traços inequívocos do talento faulkneriano e que servem para desmentir essa hipótese absurda.
Sob o olhar vigilante de Charles (Charlie, Chick) Mallison, sobrinho do advogado e promotor público Gavin Stevens, as histórias vão se desenvolvendo com vigor e limpidez. Charles é um personagem mutante, desses acumulam varias funções, inclusive narrar as aventuras do seu parente. Em todas as situações está próximo do tio. Seja como a criança que bisbilhota o cenário de um crime, seja com o jovem adulto (18 anos) que acompanha Gavin a um haras, o rapaz testemunha (e relata para o leitor) o poderoso processo analítico proposto pelo promotor: (...) dizendo ao tio o que até agora mesmo o tom de sua voz não dissera.
Homem culto, Gavin Stevens adora jogar xadrez e, como se fosse uma espécie de detetive caipira, vai desfazendo as cortinas de fumaça que surgem a todo instante. Confia mais na intuição do que nos homens. Raras vezes está errado: Era formado em Harvard: um homem pouco desconjuntado, com um tufo de cabelos grisalhos desalinhados, que podia discutir Einstein com professores universitários e passava tardes inteiras de cócoras junto às paredes dos armazéns da região, conversando com os homens em seu próprio linguajar. Para ele, dizia, isso era como sair de férias.
As seis narrativas que compõem Lance Mortal contam situações pitorescas da vida quase rural da cidade de Jefferson, situada no mitológico condado de Yoknapatawpha, no Mississipi. Em Fumaça, há o horror das desavenças familiares. Os irmãos gêmeos, Virgilius e Anselm Holland, irreconciliáveis por mais de quinze anos, quase são enganados pelos estragos produzidos pela ganância. Gavin, através de um pequeno truque, soluciona o caso. Monk explora o preconceito e a ingenuidade. É uma narrativa cruel, humanamente cruel. Mãos sobre as águas apresenta estrutura de conto policial e o desfecho se mostra semelhante a algum enigma solucionado por Sherlock Homes (Charlie fazendo pose de John Hamish Watson). Amanhã é um tour de force, o passado refletindo o presente, revelando que o amor (e a lembrança dos tempos de felicidade) sobrevive à poeira do tempo. Um Erro de Química trata do ilusionismo, das aparências, dessas que escondem as sujeiras que estão escondidas nos bastidores da alma humana. Em Lance Mortal, a mais longa das narrativas, 116 páginas, e, inegavelmente, a de melhor realização estilística, há várias histórias sobrepostas: golpe do baú, a honra ferida, cavalos ariscos, um capitão argentino, as duas cartas enviadas para as pessoas erradas e o reencontro do passado (vinte anos depois) com um amor perdido. Ao fundo, a II Guerra Mundial – como que a lembrar que a maldade do mundo precisa ser castigada. Essa não é uma narrativa pacifica, dessas em que "aparentemente não acontece nada", como evidenciam as palavras agressivas que o Capitão Gualdres diz para Gavin Stevens: Então retornaremos para o meu – nosso – país, onde o senhor não está. Porque eu acho o senhor um homem muito perigoso e eu não gosto do senhor.
Jefferson, Yoknapatawpha, Mississipi – a soma geográfica desses três nomes resulta em histórias sangrentas (Ah, disse ele, mas a justiça não é sempre injusta? Não é sempre composta de injustiça e sorte e lugar−comum em partes iguais?).
O que não e possível negar é que, mesmo em textos "menores", William Faulkner é um mestre. Como podemos ver na maneira elegante com que ele arremata o conto Lance Mortal:
E isso foi vinte anos atrás. E era verdade então ou pelo menos suficiente ou então pelo menos suficiente para você. E agora se passaram vinte anos e não é verdade agora ou pelo menos não o suficiente agora ou pelo menos não o suficiente para você agora. Como os anos fazem tudo isso?
Eles me fizeram mais velho, disse o tio. Eu melhorei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário