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segunda-feira, 23 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (I)



Como é de conhecimento geral, amplo e irrestrito sou uma negação nos assuntos que envolvem a cozinha. É uma área, digamos assim, quase desabitada do apartamento em que moro. No dia a dia só a frequento porque lá estão a geladeira e o micro-ondas. E sem a ajuda desses dois “amigos” a minha vida não existe.




Isolado pelo Covid-19, hoje pela manhã, surpreendi a mim mesmo lavando a louça. Lavando a louça! E não era um daqueles casos de desespero, uma pilha imensa de sujeira. Apenas dois pratos, uns copos e quatro ou cinco talheres. De qualquer forma, no meio da tarefa, diante do inusitado da situação, pensei que estava protagonizando algum pesadelo. 

Nada disso! Ocorre que, voluntariamente, resolvi enfrentar os meus demônios interiores. Ou seja, devo estar entediado. Ou louco. Que se no es lo mismo, pero es igual, como cantou alguém, em tempos idos e vividos, essa coisa maluca que minha avó chamava de outrora. Ou será aurora? Não, a aurora da minha vida foi em outro momento.

Divago. Bem devagar. Que a pressa é a inimiga da perfeição. Também devo esse clichê à minha avó. Tínhamos ritmos diferentes e ela fazia questão de desacelerar as minhas angústias. Saudades do café com mistura que Dona  Henriqueta servia todos os dias, lá pelas quatro horas da tarde. Era um momento de colocar a conversa em ordem ou de apenas estar juntos.

O fato básico é que fui criado pela minha mãe longe da cozinha. O medo de que pudesse quebrar algum utensílio doméstico deve ter sido uma boa barreira contra a educação doméstica. Não sei. O mais provável é que o machismo também tenha culpa. Aliás, bastante culpa. Na minha infância, o lugar do homem era outro. E, Deus nos livre, se algum dos meninos da família tivesse a masculinidade colocada em dúvida! Era pior do que o apocalipse!

Partindo dessa premissa, nem mesmo fritar ovo me foi ensinado. Obviamente, essa ignorância me custou caro. Mas isso é história para outra oportunidade.


De vassoura em punho, varri (preguiçosamente) o quarto, a cozinha e o escritório. Cansei. Bebi água. Limpei o banheiro, reuni o lixo (depois colocarei na lixeira do prédio), troquei a roupa de cama. Fui tomar banho. Bebi mais um pouco de água mineral com gás. 

(Preciso abrir um parênteses nestas anotações. Fico imaginando que, no final da tarde, cerveja ou vinho seriam melhores que água. Bem melhores. Mas as autoridades de saúde estão alertando que o álcool baixa a imunidade. Então, vamos ao sacrifício: água!)

O resto da limpeza do apartamento talvez aconteça amanhã. Ou depois. Depende do que disser o horóscopo – que consulto diariamente. No presente momento, o horóscopo é mais confiável do que a Bolsa de Valores.

Li um pouco. Há quem diga que isso não é trabalho, mas uma folga com ares intelectuais, uma forma sofisticada de fugir do “pesado”. Pode ser. Não vou discutir esse tipo de tolice (que provavelmente teve origem na Idade Média – ou antes). No momento, estou dividido entre um romance policial, um estudo sobre a Semana de Arte Moderna (1922) e um ensaio literário. Sigo a regra menos ortodoxa: ler vários ao mesmo tempo. Em alguns momentos da leitura a pausa é necessária, momento de reflexão. Talvez até para nos alertar que devemos voltar algumas páginas, procurar por algo que possa ter escapado. Então alterno a leitura, leio um conto, volto ao romance, abro os ensaios, vou tentando entender o mundo e os livros.

Nesta quarentena leitura não me faltará. Os livros que considero como prioridades devem ser – atualmente – uns cinquenta, divididos entre romances, contos, teoria política, sociologia e teoria literária. Muitos deles estão empilhados no criado mudo, ao lado da cama. Gosto de tê-los por perto. Gosto de pensar que eles velam pelo meu sono e pelos meus sonhos. Muitas vezes tenho acordado no meio da noite. Basta acender a luz e retomar a leitura.

Meu pai, em momentos de desacerto comigo, costumava dizer que um burro carregado de livros é doutor. Descontando o valor pejorativo que ele atribuía aos doutores (na compreensão que ele tinha da vida, advogados e médicos), creio que tive poucos dissabores com o mundo literário. E nunca me incomodei de ser rotulado como burro (mas não tenho informações sobre se os burros se incomodaram com a comparação...).



Também não me causou constrangimento quando um professor disse que eu parecia com um caracol. Aluno da UFSC, no final dos anos 90, aparecia na sala de aula carregando uma mochila pesada (uma muda de roupa, livros, livros e mais alguns livros xerocados). Eram tempos difíceis, tinha inúmeras dificuldades financeiras e morava longe (uns 300 km de Florianópolis). Uma vez por semana embarcava no ônibus da Reunidas, lá pelas seis da manhã e ia para a aula. Voltava no mesmo dia, no meio da madrugada, cansado, com fome e satisfeito com a aventura. Precisava improvisar quase todo o tempo em que estava estudando. Ou seja, carregava a casa nas costas – daí a razão do apelido.

Aprendi – na prática – que aquela observação do meu pai era uma bobagem imensa. Também aprendi (desta vez com minha mãe) que é preciso lutar contra a insensatez, a violência e a ausência de afeto. Escrevo esse último item ciente de não sou exatamente um sujeito que abraça, que incentiva ou que dissimula. Ao contrário, raramente encosto no corpo das outras pessoas e tenho mais prazer em estabelecer a crítica do que o elogio. No entanto, de quem gosto – gosto!  E quase sempre é para sempre. Nesses casos, sigo as instruções de François de La Rochefoucauld, Perdoamos facilmente nos amigos os defeitos que não nos incomodam.

Vejo que comecei com um assunto e vou terminar com outro. No meio do caminho, empolgado com a dança dos dedos no teclado do computador, tomei um atalho e me perdi. Somente vi a luz neste parágrafo, várias léguas depois. Agora é tarde para eliminar o estrago. E o que não tem conserto, consertado está (minha avó, outra vez!).

(continuo em outra hora)

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