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terça-feira, 31 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (IX)


A grande novidade do dia é que troquei o detergente biodegradável por sabão de coco. Segui a recomendação de um amigo, especialista em lavar louça. Disse-me que não resseca as mãos. Ter mãos eternamente macias é um dos meus objetivos na vida. Por isso, e por meia dúzia de motivos muito mais banais, aceitei a aventura. O que não sei é se o efeito é imediato ou se precisarei aguardar até o fim da quarentena. Esqueci-me de fazer essa pergunta de suma importância.



Não importa. Hoje, a pia da cozinha está limpa. Só não digo que está brilhando porque ainda sou aprendiz nesse tipo de serviço. Estou adquirindo prática. Quiçá precise dessas habilidades em algum momento do futuro. A vida muitas vezes se parece com um turbilhão, sempre existe a possibilidade de alguma reviravolta – para nos punir por algo que fizemos ou deixamos de fazer.

Por exemplo, fui abrir um enlatado para o almoço. Não sei qual foi o maior desastre, se aquela gosma engordurada na minha camiseta ou no piso da cozinha. Soltei vários palavrões em alto e bom som. É possível que os vizinhos do andar de cima tenham escutado. Não vai ser fácil cumprimentá-los, como se tudo estivesse bem, quando os encontrar no corredor do prédio. Depois dessa pequena crise de destempero, minha fama de “estranho” provavelmente aumentou. 


Lá fui eu atrás de um pano para tentar limpar o chão. Demorei uma eternidade nessa faxina inesperada. Provavelmente fiz alguma besteira. Em algum momento descobrirei o quê. Destruídas as chances de ter uma refeição decente, fui tomar banho. Depois, administrei o caos. E isso quer dizer que resisti à tentação de pedir comida pelo delivery. Improvisei. Ficar com fome não era opcional.

Passei a tarde toda trabalhando. O computador é o meu feitor de escravos. Serviço não falta – o que falta é a vontade de trabalhar. Sempre defendi a tese de que é melhor deixar para amanhã o que não quero fazer hoje. E raramente quero fazer alguma coisa – hoje ou amanhã.

Infelizmente, o direito à preguiça é uma escola filosófica que conta com poucos adeptos no mundo utilitarista contemporâneo. Falta crédito. Sobram débitos.  

Os detentores dos meios de produção, vulgarmente chamados de empresários ou empreendedores, alegam que os trabalhadores devem produzir incessantemente e que os custos para obter o máximo da força de trabalho devem ser mínimos. Simultâneo a essa postura, o medo de que aconteça algo imprevisto acena como uma espada no pescoço do condenado. Considerando que entre aqueles que fazem negócios não há um único inocente, grandes prejuízos econômicos podem machucar mais do que dez anos de trabalhos forçados. 

A ironia surge através do Covid-19, que colocou a voracidade capitalista em xeque. A pausa obrigatória, popular quarentena, confirmou tudo o que antes parecia ser apenas paranoia de alguns economistas pessimistas. A Bolsa de Valores despencou, as moedas perderam valor e a relação capital-trabalho voltou a ter visibilidade.


Espectador privilegiado dos acontecimentos, encontro – atualmente – na vassoura, no sabão de coco, no computador e nas pequenas comédias cotidianas uma forma de sobrevivência. Nas horas vagas leio, escrevo, assisto filmes, fujo do trabalho, converso comigo mesmo, procuro não enlouquecer. Talvez não seja muito. Mas, para mim, é o bastante.

(continuo em outro momento)

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