Essa história de ficar em casa, sem ter
o que fazer... mente vazia, oficina do diabo, como dizia minha avó. Se o
sujeito não se cuidar, no primeiro instante está puxando angústia (como
aqueles rapazes do romance O Encontro Marcado, do Fernando Sabino) ou
recuperando lembranças do passado. Esta semana fui vítima do segundo caso.
Estou participando de um
grupo de whatsup com pessoas que estudaram comigo no segundo grau. A ideia geral
é fazer uma reunião festiva – daqui a alguns meses – para reencontrar os
dinossauros, digo, os sobreviventes. Estamos todos na faixa dos 60 anos e não
será surpresa se alguns já estiverem usando bengala, tomando mil remédios (pressão, diabetes, próstata, doenças cardíacas) e oferecendo aos netos o carinho que recusaram aos filhos.
Não sei se quero ir a esse evento.
Aliás, como quase sempre, nunca sei se algo é bom ou ruim. E isso também vale
para a decisão de participar no grupo de whatsup.
Tenho lembranças nebulosas daqueles
tempos. Minha família estava fragmentada e o dinheiro que a minha mãe conseguia
ganhar só servia para pagar o aluguel e a comida. Além disso, para ajudar na confusão,
estive várias vezes próximo de perder a microbolsa de estudos que recebia do
colégio. Um dos episódios mais significativos, e que me causou muitos
aborrecimentos, foi a decisão de não frequentar as aulas de educação física. O
professor, adepto entusiasmado do atletismo, exigia que os alunos fizessem
corridas de vários quilômetros, subindo e descendo morros íngremes, incentivava
arremessos e saltos diversos, queria formar campeões. Era o horror – principalmente
para quem queria ficar sozinho, ou, no máximo, na companhia dos livros. Resumindo: naquelas aulas, onde predominava o vigor solar, não havia lugar para alguém que vivia no mundo da lua.
Colégio técnico: as aulas
regulares ocorriam pela manhã e o ensino profissionalizante era ministrado no período da tarde. Poucas escolhas estavam ao alcance dos alunos: mecânica de automóveis, eletricidade e tornearia
mecânica. Para ser sincero, uma pior do que a outra. Detesto automóveis e morro
de medo de eletricidade (até trocar lâmpada me deixa em pânico). Não restou
alternativa.
Aborrecimento era o mínimo que aquelas aulas me causavam. Uma das
tarefas (que deve ter sido elaborada por algum aprendiz de Torquemada) consistia
em limar um bloco de metal. O aluno precisava deixá-lo absolutamente retilíneo,
não podia passar uma mísera fresta de luz. Esporadicamente, o professor, munido
de um instrumento de tortura medieval chamado paquímetro, fazia a aferição. Meu bloco
nunca estava de acordo com o esperado. E lá ia a vítima para mais algumas horas
de esforço físico, mais um calo na mão e nota baixa.
Outro episódio surreal daquela época: eu
fui professor de História da minha própria turma! Em diversos momentos, por
problemas particulares, o titular da cadeira precisou se ausentar. Como ele já
tinha sido meu professor em outra escola e sabia que eu tinha algum conhecimento
sobre o conteúdo, me pediu para substituí-lo. Empolgado, sem pensar nas
consequências, aceitei a tarefa. Foi divertido. De qualquer maneira, nunca
procurei saber se a direção do colégio tomou conhecimento dessa infração.
Entre os professores, várias figurinhas carimbadas.
Em especial, a professora de biologia. Maria Helena, vulgo Samambaia, tratava
os alunos como se fossem escravos de galés. Mal aparecia na esquina do corredor
e já estava ditando matéria. Era Mefistófeles personificado em alguém que
recusava ser simpática. Lembro-me de um raro momento em que perdeu a linha. Como
é de lei, a sala tinha um candidato a humorista. O cara não perdia uma
oportunidade para fazer alguma gracinha. No meio de alguma explicação, disse o
que não devia – ou devia, sei lá! Maria Helena ficou furiosa e falou algo sobre
não tolerar criancices e que, se o sujeito não se comportasse, ela compraria
uma chupeta para ele. Contrariando as regras da relação professor-aluno, o
sujeito fez pouco caso do sermão, e provocou: se ela pagasse, ele mesmo iria
comprar a chupeta. Fez-se o silêncio.
Parecia rodada decisiva de pôquer, a dúvida instalada: será que um dos
jogadores iria desistir ou mergulhariam de cabeça no turbilhão do all-in?
Maria Helena conferiu as suas fichas e resolveu pagar para ver. Pegou o
dinheiro na bolsa e entregou para o aluno. Para surpresa geral e desmoralização
total da professora, uns dez minutos depois, ele voltou para a sala e passou o
resto da aula chupando chupeta.
Anderson, professor de física, era
gremista fanático. Aulas nas manhãs de segunda-feira eram sinônimos do
fracasso. Alguém sempre fazia alguma pergunta sobre o jogo de domingo. Ele
tentava fugir do assunto. Outro aluno iniciava nova provocação. Alguma coisa transbordava dentro daquele homem educadíssimo, a paixão tomava conta e... o pandemônio se estabelecia. Adeus aula! Muitos anos depois, foi meu vizinho. Certa vez, enquanto esperávamos pelo elevador, relembramos essas pequenas trapaças
da sorte.
As melhores aulas (para mim) eram de
português e inglês, história e geografia, matérias que eu gostava e que serviram
para me mostrar que existem outros caminhos além da mediocridade. Às vezes
encontro Dona Vânia Albuquerque no supermercado, mas nunca consigo dizer o
quanto estou em dívida com a professora que, constantemente, me incentivou na
direção da leitura, com a professora que respondia ao meu destempero com doçura
e paciência.
No terceiro ano do colegial resolvi
abandonar tudo. Não terminei o ano. Estava no lugar errado. Só fui completar o
segundo grau uns cinco anos depois e em outra escola. Minha mãe ficou furiosa,
mas teve sensibilidade para compreender que aumentar a infelicidade costuma
causar estragos irrecuperáveis.
Como aconteceu no passado, estou em
outra sintonia – pouco ou nada tenho em comum com eles. Vejo as postagens no
grupo de whatsup e não os reconheço. Não me reconheço como um deles. Para o bem
ou para o mal, ainda não decidi se vou à festa.
(P. S: as fotos não são minhas. Quando os autores se manifestarem, acrescentarei o crédito).
(continuo em outra hora)
Vai sim Raul! Encontrar pessoas do nosso passado próximo é interessante! Até para nós mesmos muitas vezes esses encontros revelam sentimentos e sensações que talvez nunca sentimos! Adorei a leitura! Abraço!
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