Hoje é day off em Yekaterinburg, Rússia. Ou seja, vou precisar preencher minha manhã com outra(s) atividade(s).
Yekaterinburg, a quarta maior cidade da Rússia (depois de Moscou, São Petersburgo e Novosibirsk), tem população de 1,4 milhões de habitantes e está situada nos Montes Urais, a 1667 quilômetros a leste de Moscou.
Yekaterinburg
está – neste momento – sediando o Torneio dos Candidatos, competição entre oito jogadores para decidir quem será o desafiante do norueguês Magnus
Carlsen, atual campeão mundial de xadrez.
Estou
assistindo as partidas pela Internet. Enquanto os jogadores pensam e fazem as
jogadas, eu vou executando as tarefas diárias que competem a um enclausurado. De
quinze em quinze minutos (ou menos) dou uma olhada, arrisco alguns palpites, imagino
a agonia que deve estar escorrendo pelo rosto daqueles que estão envolvidos no
evento, a ameaça do torneio ser interrompido a qualquer instante. Estão sendo
feitos testes duas vezes ao dia para detectar o Covid-19. Mas, além dos
jogadores, há os árbitros, os técnicos de televisão e informática, o pessoal do hotel e da
cozinha, etc. Uma multidão.
Sobre
o nível de sanidade mental dos jogadores de xadrez ninguém
discute: é quase zero. O mesmo valor pode ser usado para estabelecer o grau de comprometimento com o mundo exterior. Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa,
desenhou o cenário:
Ardiam casas,
saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Transpassadas
de lanças, as crianças
Eram sangue
nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.
O torneio em Yekaterinburg está sendo
liderado pelo russo Ian Nepomniachtchi, “Nepo” para os íntimos, quase impossível
pronunciar esse amontoado de consoantes sem tropeçar na língua, sem proferir um
sonoro palavrão. Até o momento foram jogadas seis partidas – de um total de
quatorze. Nepo ganhou três e empatou outras três. Para os analistas, é um
azarão. Os favoritos são outros, mas... O chinês Liren Ding já perdeu três
partidas e as suas chances daqui para frente parecem ser mínimas. O
estadunidense Fabiano Caruana ainda não “engrenou”.
O xadrez faz parte da minha vida desde
que eu tinha uns quinze anos. Na escola, incompetente em qualquer esporte, inclusive
futebol, voltei o olhar para um jogo em que não precisava fazer esforço físico.
Quer dizer, bastava raciocinar e mover umas peças de madeira em um tabuleiro de
64 casas. Fácil! Como sempre, estava enganado. Quem quer ganhar precisa “suar a
camiseta”. Isso para não mencionar as horas de estudo, os exercícios cada vez
mais complicados, a alimentação balanceada e uma rotina espartana.
Em outras palavras, foi essa a
forma que escolhi para sobreviver em um mundo em que a mentalidade
esportiva mascara os instintos mais básicos do ser humano. Freud explica – ou complica.
Joguei competitivamente durante muito
tempo. Mas nunca fui considerado uma ameaça. Faltava-me regularidade e
concentração. Esporadicamente “acertava” algum dos candidatos ao título, mas
perdia para os jogadores mais fracos. Enfim, roteiro para um filme ruim.
Falando em filmes, quem se interessa
pelo jogo encontra diversão em Lances Inocentes (Searching for Bobby Fischer.
Dir. Steven Zaillian, 1993), Fresh – Inocência Perdida (Fresh. Dir. Boaz
Yakin, 1994), O Último Lance (The Luzin Defence. Dir. Marleen Gorris, 2000.
Baseado em uma novela de Vladimir Nabokov), Xeque-Mate (Joueuse. Dir.
Caroline Bottaro, 2009. Baseado no romance de Bertina Henrichs), Jogada de Rei (Life of a King. Dir. Jake Goldberger, 2014), O Dono do Jogo (Pawn Sacrifice.
Dir. Edward Zwick, 2015), A
Rainha de Katwe (Queen of Katwe. Dir. Mira Noir, 2016) e A Chance de Fahim (Fahim. Dir. Pierre-François Martin-Laval, 2019).
Há outros, claro, inclusive O Sétimo
Selo (Det sjunde inseglet. Dir. Ingmar Bergman, 1959), onde o personagem
interpretado por Max Von Sydow joga uma partida contra a morte. Em Casablanca (Casablanca. Dir. Michael Curtis, 1942), o tabuleiro aparece para induzir uma
atmosfera intelectual no personagem de Humphrey Bogart.
E os livros de ficção... são muitos. Como estou
desconfiado que o xadrez ainda vai render muito assunto nesse diário, vou
deixar essa lista para depois.
Resumindo, o xadrez é um jogo que (dizem)
simula a guerra, com a vantagem de deixar os jogadores vivos. Não tenho certeza
disso. Basta lembrar os pontapés que Tigran Petrosian e Victor Korchnoi (dois cavalheiros de fina estampa) trocaram por baixo da mesa, em um dos Torneios dos
Candidatos, lá pelos anos 80 do século passado. Foi necessário colocar uma tábua divisória para evitar alguma fratura.
Volto ao poema de Ricardo Reis (Fernando
Pessoa):
Quando o rei de
marfim está em perigo
Que importa a
carne e o osso
Das irmãs e das
mães e das crianças?
Quando a torre
não cobre
A retirada da
rainha branca
O saque pouco
importa.
E quando a mão
confiada leva o xeque
Ao rei do
adversário,
Pouco pesa na
alma que lá longe
Estejam morrendo
filhos.
(continuo em outra hora)
Li de Fernando Arrabal, há muito tempo "A torre atingida por um raio" se não me engano é este o título.Pano de fundo era a guerra fria e a disputa do campeonato mundial enter um americano e um russo. não recordo mais detalhes, exceto que no fim do livro todas as jogadas contidas na narrativa foram publicadas
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