Passei o domingo internado. Calma, estou
bem. Usei a palavra internado apenas como um recurso retórico, uma forma de
destacar que fiquei dentro de casa. Poderia usar outro termo, outro discurso.
Não vou fazer isso. Prefiro usar esse mesmo, internado, para dizer/escrever
que, nestes tempos sombrios em que estamos vivendo, é necessário ter cuidado
com as palavras, não se pode proferir o primeiro desatino que nos ocorre, há o
risco de causar confusões, pânico, mal-estar. Alguém sempre interpreta (ou não)
o texto ao pé da letra, esquecendo a existências das entrelinhas, da ironia,
das sutilezas semânticas, as palavras em expansão dentro da frase, quase uma
explosão solar.
Fiz quase nada durante o dia todo. Nem
mesmo lavei a louça. Day off das obrigações domésticas – a montanha de
pratos sujos transformou a pia em um Everest. A comédia que protagonizo é assim
mesmo, vivo tropeçando aqui e ali, tentando manter algum tipo de razoabilidade,
uma xícara de chá sempre ajuda – como se fosse aquela suavidade do Almir Sater,
quando canta Ando devagar porque já tive pressa.
Dormi até tarde, almocei, ouvi música,
assisti (mais uma vez) As Férias do Senhor Hulot (Dir. Jacques Tati, 1953),
li um pouco, respondi umas mensagens no Facebook e no Instagram. A televisão, Harpia midiática, permaneceu muda e calada durante o dia e a noite – não
permiti que assombrasse os meus fantasmas de estimação.
Falei com vários amigos pelo telefone,
perguntei sobre as novidades, falamos bobagens politicamente incorretas, elaboramos
esboços de planos para o porvir (na esperança de que o porvir exista), mandamos
os fascistas para além de onde o Judas perdeu as botas. Foi bom saber que o
pulso ainda pulsa, e que, apesar do solitário andar por entre a gente,
muitas pessoas ainda estão interessadas em Conhecer as manhas e as manhãs / O
sabor das massas e das maçãs.
Estou lendo ficção científica. Creio que
combina com o Covid-19. Nas minhas estantes e nas livrarias (físicas ou “on
line”), esse gênero literário está em destaque. Ninguém pode negar que o
apocalipse e o messianismo possuem um poder absurdo de atração. Nos países de
língua portuguesa, a tradição revela que sempre há alguém esperando pela volta
de Dom Sebastião, exemplar cavalheiro medieval que há de nos salvar dos males
do mundo. Enquanto ele não chega, precisamos sair do inferno. Desse lugar
ninguém escapa com boas maneiras.
O mérito da ficção cientifica está em nos
dizer que o flagelo abocanhou, mastigou e engoliu o presente como se fosse um
pedaço de bife mal passado. Com a boca suja de sangue, abraçado com sua irmã, a
distopia, ele contempla as vítimas. Está sorrindo.
Separei vários romances de autores
consagrados: Úrsula Le Guin, Octavia Estelle Butler, Arthur Charles Clark, Philip Kindred Dick, John
Scalzi e Robert Anson Heinlein. Não sei se vou conseguir ler todos. E a ideia
não é essa. Estou passeando por um gênero literário que não costumo frequentar.
Talvez no terceiro ou no quinto livro a saturação se instale. Antes que isso
aconteça, quero mergulhar nessa imensidão que é o 1984, do George Orwell. Comprei
uma edição bonita, capa dura, custou caro, não dá para emparedá-lo entre outros
livros antes da leitura.
Seguindo o mesmo tom, voltei o olhar para
um texto clássico de Walter Benjamim: Sobre o Conceito de História. A imagem
do anjo da História, contemplando os desastres do presente, enquanto é impelido
para o futuro, indica que onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê
uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa aos nossos pés. Essa tempestade é o preço que pagamos pelo progresso.
(continuo outra hora)
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