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segunda-feira, 30 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (VIII)




Passei o domingo internado. Calma, estou bem. Usei a palavra internado apenas como um recurso retórico, uma forma de destacar que fiquei dentro de casa. Poderia usar outro termo, outro discurso. Não vou fazer isso. Prefiro usar esse mesmo, internado, para dizer/escrever que, nestes tempos sombrios em que estamos vivendo, é necessário ter cuidado com as palavras, não se pode proferir o primeiro desatino que nos ocorre, há o risco de causar confusões, pânico, mal-estar. Alguém sempre interpreta (ou não) o texto ao pé da letra, esquecendo a existências das entrelinhas, da ironia, das sutilezas semânticas, as palavras em expansão dentro da frase, quase uma explosão solar.

Fiz quase nada durante o dia todo. Nem mesmo lavei a louça. Day off das obrigações domésticas – a montanha de pratos sujos transformou a pia em um Everest. A comédia que protagonizo é assim mesmo, vivo tropeçando aqui e ali, tentando manter algum tipo de razoabilidade, uma xícara de chá sempre ajuda – como se fosse aquela suavidade do Almir Sater, quando canta Ando devagar porque já tive pressa.


Dormi até tarde, almocei, ouvi música, assisti (mais uma vez) As Férias do Senhor Hulot (Dir. Jacques Tati, 1953), li um pouco, respondi umas mensagens no Facebook e no Instagram. A televisão, Harpia midiática, permaneceu muda e calada durante o dia e a noite – não permiti que assombrasse os meus fantasmas de estimação.




Falei com vários amigos pelo telefone, perguntei sobre as novidades, falamos bobagens politicamente incorretas, elaboramos esboços de planos para o porvir (na esperança de que o porvir exista), mandamos os fascistas para além de onde o Judas perdeu as botas. Foi bom saber que o pulso ainda pulsa, e que, apesar do solitário andar por entre a gente, muitas pessoas ainda estão interessadas em Conhecer as manhas e as manhãs / O sabor das massas e das maçãs.

Estou lendo ficção científica. Creio que combina com o Covid-19. Nas minhas estantes e nas livrarias (físicas ou “on line”), esse gênero literário está em destaque. Ninguém pode negar que o apocalipse e o messianismo possuem um poder absurdo de atração. Nos países de língua portuguesa, a tradição revela que sempre há alguém esperando pela volta de Dom Sebastião, exemplar cavalheiro medieval que há de nos salvar dos males do mundo. Enquanto ele não chega, precisamos sair do inferno. Desse lugar ninguém escapa com boas maneiras.

O mérito da ficção cientifica está em nos dizer que o flagelo abocanhou, mastigou e engoliu o presente como se fosse um pedaço de bife mal passado. Com a boca suja de sangue, abraçado com sua irmã, a distopia, ele contempla as vítimas. Está sorrindo.

Separei vários romances de autores consagrados: Úrsula Le Guin, Octavia Estelle Butler, Arthur Charles Clark, Philip Kindred Dick, John Scalzi e Robert Anson Heinlein. Não sei se vou conseguir ler todos. E a ideia não é essa. Estou passeando por um gênero literário que não costumo frequentar. Talvez no terceiro ou no quinto livro a saturação se instale. Antes que isso aconteça, quero mergulhar nessa imensidão que é o 1984, do George Orwell. Comprei uma edição bonita, capa dura, custou caro, não dá para emparedá-lo entre outros livros antes da leitura.




Seguindo o mesmo tom, voltei o olhar para um texto clássico de Walter Benjamim: Sobre o Conceito de História. A imagem do anjo da História, contemplando os desastres do presente, enquanto é impelido para o futuro, indica que onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa aos nossos pés. Essa tempestade é o preço que pagamos pelo progresso.

(continuo outra hora)

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