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sábado, 28 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (VI)



Toda vez que alguém me apresenta dados estatísticos, gráficos e análises de probabilidades, a minha vontade é a de repetir uma frase que emoldura o romance de ficção científica Guerra do Velho, de John Scalzi: não tenho matemática suficiente para isso. E não tenho mesmo.



Na escola, quando a aritmética era obrigatória, costumava somar o tédio com os elementos descritos no enunciado das provas. Ainda hoje, tenho a impressão de que combater a Medusa é mais fácil do que resolver alguns problemas algébricos (logaritmos, derivadas, matrizes e determinantes, por exemplo). Acumulei noites de insônia por causa desses monstros.

Falta-me paciência e fé para compreender o mundo dos números. Quando vejo equações, diagramas, planilhas de Excel, planos cartesianos, vetores, fluxogramas, essa parafernália que acompanha a matemática, lembro-me de alguns versos do Augusto dos Anjos: esse ambiente me causa repugnância... / Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia.

Com a atual situação de alerta mundial por causa do Covid-19, o pessoal da matemática, (principalmente os fanáticos pela estatística) está em festa. Fazem cálculos de probabilidade para tudo – desde as porcentagens de alguém deixar de viver nas próximas 24 horas até a quantidade de unhas encravadas existentes em grupos de mil habitantes.

Os jornais (físicos, virtuais e televisivos), ávidos por novidades, multiplicam esse tipo de “enrolação”. E abusam dos infogramas (representação gráfica visual que complementa o texto).  Além de ajudar o leitor a assimilar a informação, esse recurso fornece corpo e substância para as notícias. Isso é fácil de entender. Mas,...

Os números (distribuídos em pontos, curvas, colunas, estereogramas, pictogramas, cartogramas, etc), auxiliados pela técnica da diagramação, também são uma forma de higienizar a informação, de retirar do olhar do indivíduo uma serie de dados que poderiam fornecer outra leitura. Assim como a pornografia, os infogramas se propõem a satisfazer um desejo imediato, supérfluo, sem grandes consequências.




Certa vez, Andrew Lang escreveu que usa-se a estatística como um homem bêbado usa um poste, mais para se apoiar que para iluminar. Ou seja, a estatística é uma ferramenta auxiliar. Infelizmente, não é assim que o imaginário popular entende. A publicação de qualquer conjunto de números assume o estatuto de verdade – porque a verdade contemporânea não precisa estar conectada com a realidade. Nesse sentido sem sentido, os números possuem poder e expressam, sem dúvida, o conceito de pós-verdade.

A literatura, forma artística que celebra a vida (principalmente quando a inventa através da poesia e da ficção), têm dificuldades para compreender a célebre afirmação de Josef Stalin: a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística. Diminuir o significado da morte, usando números, é irracional, é desumano. A morte, independente da quantidade, sempre caracteriza o absurdo.

Desde que nasci estou em luta diária contra os números. Em alguns momentos, não os entendo, assim como não entendo grego, sânscrito ou mandarim; em outros momentos, os vejo como instrumentos de opressão, induzindo desinformação – ou comportamentos sociais, políticos e econômicos.  

Quando dizem que os números não mentem, lembro de Mark Twain afirmando que há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras disfarçadas e estatísticas.


(continuo em outra hora)

2 comentários:

  1. Muito bom Raul. Eu gosto de pesquisar com números, mas me recuso em tratá-los como números. Desde minha época em que trabalhava com Educação de Jovens e Adultos qualquer unidade significava, para mim, uma pessoa assim como é agora nesses momentos de pandemia. Não podemos banalizar os números, nos satisfazer que eles se tornam menores ou que aumentem menos aceleradamente. Penso o mesmo em relação à violência, à dengue, à fome, desigualdade etc.
    Mas, também não podemos nos esquecer das grandes guerras assim como de outras pandemias como a de 2009, durante a qual nem o governo Lula nem a oposição fizeram qualquer movimento similar ao que hoje convivemos.
    Meu coração é vermelho.
    Te cuida. Abração. Zé Manoel.

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  2. É números são no mínimo interessantes. Podem mentir, enganar, e até mesmo sabotar, sendo exatos. Abraço!

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