Um dia como outro qualquer. Claro que
isso é uma mentira. Fugi da quarentena autoimposta. Fui até o centro da cidade. Uns vinte
minutos de caminhada para ir, outro tanto para voltar. De bermuda e sandália,
como compete a um turista em filme de ficção científica. Faltou
a máquina fotográfica a tiracolo. Por isso vou ficar devendo as melhores imagens
da aventura. Desculpem-me!
Fui pagar contas. Tenho restrições ao uso dos aplicativos bancários. Não me inspiram confiança. Essa recusa aos
avanços tecnológicos não é recente. As teorias conspiratórias ficam mais
sólidas no meu imaginário todas as vezes que ouço alguma história sobre
clonagem de celular ou de conta bancária.
Comparei a paisagem que vi com uma cidade fantasma, lugar comum nos faroestes que assisti quando era
pré-adolescente. Matinê de domingo, no Cine Tamoio. Faltou o ranger das placas
das lojas, empurradas pelo vento, e os montes de feno rolando pelas ruas. No
resto, tudo igual: lojas fechadas, poucas pessoas na rua, um ou outro
trabalhador executando serviço braçal. Esse conjunto de imagens me impressionou
tanto que não ficarei surpreso se ler nos jornais, amanhã, alguma notícia sobre
duelos ao entardecer.
Na farmácia, antes de ir ao banco, comprei
luvas de borracha. Mais uma bobagem para a coleção. Esqueci que a modernidade
me escravizou à biometria.
Da forma mais deprimente possível,
descubro que o corpo – vulnerável à doença - se confunde com as relações
monetárias. A potência que emana da vida se torna insignificante diante do
saldo bancário. O dinheiro e a doença estão amalgamados com o corpo. E não há
como fugir dessa tragédia.
Não consegui resolver todos os problemas
que me fizeram sair de casa. Tentarei outras soluções. Ou não.
Na volta, passei no supermercado. Não me
parece sensato viver sem Coca-Cola, chocolate, bolacha, sorvete, queijo,
iogurte, enlatados diversos. Apenas o indispensável, que os tempos são de crise
e os juros do cheque especial não foram afetados pelo Covid-19.
Em casa, depois de guardar as compras e
tomar banho, pedi comida pelo delivery: bife à parmegiana. Diante do prato, a
memoria afetiva disparou outra vez. Lembrei de outros tempos, aqueles em que minha
mãe celebrava a existência com alegria e mesa farta. Depois de superar várias
dificuldades econômicas, bifes à parmegiana eram – em nossa casa – provas
incontestes de que viver se confundia com um festival de prazeres.
Se a quarentena se prolongar por muito
tempo, obterei diploma de honra ao mérito em lavação de louça. Não tenho mais
necessidade de olhar aquele tutorial no YouTube. Estou fazendo o serviço sem
encontrar dificuldades. E, até o momento, não quebrei nenhum prato, nenhum
copo. No meio dessa operação de extrema complexidade mecânica e intelectual,
lembrei de uma entrevista com renomado infectologista. O cara alertou sobre os
perigos que estão escondidos na cozinha. Disse que as esponjas são um dos
locais ideais para a cultura de bactérias. Então, num gesto de extrema coragem,
joguei fora a esponja velha. Eba!
O resto da tarde foi quase monótono. Varri
o escritório, coloquei o lixo para fora, li um pouco, escrevi outro tanto. E
fui surpreendido com o retorno das entregas pelos correios: um pacote que
estava em lugar incerto e não identificado chegou! Tomara que amanhã entreguem
o outro pacote desaparecido. Se isso acontecer, posso pensar em voltar ao meu
esporte predileto: comprar livros.
(continuo em outra hora)
Amei! Realmente comer acaba criando prazeres incríveis em momentos de crise. Eu sou chegada a doces. Quando a situação aperta um bolo de chocolate é um amigo incontestável! Fique em paz e em casa!
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