A ficção sempre fez parte da vida dos
moradores do Planalto Catarinense. É um mundo onde não há limites
para a imaginação. O que não pode ser vivido (vívido), deve ser inventado – diz o
manual do narrador criativo. Reunir uma serie de histórias e compor um fabulário
não parece tarefa difícil, principalmente se o contador das histórias souber misturar
o fantástico e o onírico com algum ingrediente humano, uma morte violenta, um
amor interrompido, uma briga entre vizinhos, por exemplo.
Nesses dias de
quarentena, onde a imaginação corre solta, cabe lembrar alguns dos causos que fazem
parte da mitologia da região.
Nos Morrinhos,
coração da Coxilha Rica, há um olho d’água – que fica em uma área distante da
casa grande. As crianças eram proibidas de brincar nas proximidades. Diziam que uma alma penada (que não conseguia entrar no
céu) vivia naquele local e costumava aparecer para quem se aproximasse do poço. Ninguém duvidava disso.
João Maria de Agostinho, conhecido como
São João Maria, um líder messiânico da Guerra do Contestado (1912-1916), ergueu
uma cruz de madeira no topo da colina que fica perto da cacimba. O imaginário
coletivo logo concluiu que a cruz tinha poderes milagrosos. Fez-se ali lugar de peregrinação, promessas e rezas intermináveis. Algum tempo depois, construíram uma igreja.
Idêntica circunstância envolve a gruta
de São Bom Jesus (Sambão Jesus, como dizia Edézio Nery Caon). Eu fui uma das
pessoas que foi atingida por esse tipo de devoção. Quando era criança, meu pai
(seguindo as ordens de minha mãe) me levou até Iguape, no litoral paulista,
para pagar uma promessa ao santo.
No Parque Jonas Ramos (Tanque), local
onde as esposas dos primeiros habitantes da cidade lavavam as roupas, dizem que
Antônio Correa Pinto de Macedo (o fundador da cidade, em 1776) afogou a filha (que estava grávida de um bugre – índio Xokleng). Não importa que os livros de
história desmintam esse fato e reafirmem que o sujeito nunca teve filhos, o que
vale é a lenda e a lenda diz que a moça (ou a criança que estava para nascer)
se transformou em uma serpente gigantesca – que, furiosa, queria destruir tudo o que
estivesse ao seu alcance. Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da vila,
resolveu impedir a hecatombe que se anunciava e prendeu a cabeça da cobra
embaixo de um de seus pés. Conta o povo que, no dia que a estátua da santa (que
está na catedral, próxima do altar) for removida, a cobra estará livre e a cidade
será arrasada.
Essa história apocalíptica leva ao
famoso vaticínio de São João Maria: quando as ruas de Lages se cobrirem de
negro e a Catedral apresentar rachaduras no meio, estará próximo o fim da
cidade, pois anoitecerá e não amanhecerá. Tudo será tragado e submergido nas
entranhas da terra. Poucas pessoas colocam em dúvida essa profecia. Basta perceber que
a cidade está quase toda asfaltada e que está localizada acima do aquífero Guarani,
talvez a maior reserva de água potável do mundo. Será que, em algum momento, a reprisar alguma metáfora bíblica, a terra vai se abrir
e engolir a cidade?
A ideologia bélica dos habitantes do Planalto Catarinense costuma
glorificar um grupo de cavalaria que combateu na Guerra dos Farrapos
(1835-1845), ao lado das tropas de Bento Gonçalves e Davi Canabarro. Nessa epopeia
não faltam passagens heroicas, batalhas épicas e o famoso encontro amoroso e
sexual entre Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva (também conhecida como Aninha
do Bentão) e Giuseppe Garibaldi. O mistério que intriga os historiadores (e os
escritores) está no descobrir se Anita Garibaldi nasceu no interior do
município ou em Laguna, onde residia com o marido (que era sapateiro).
Márcio Camargo Costa, provavelmente o
escritor que melhor compreendeu as tradições ficcionais da região, recuperou a
história da Caudilha de Lages (Aninha Athanasio), senhora e dona do Raposo e do
Cajuru. Com o chicote em uma das mãos e o “nagant garrão-de porco” na outra,
ela fez os homens se curvarem ao seu poder. Era uma feminista avant la
lettre.
Uma das história mais horríveis da região também
foi contada por Márcio Camargo Costa. Foi no tempo da escravidão. A esposa de um
fazendeiro recebeu alguns amigos. Uma das escravas (que era muito bonita) sorriu para um dos
visitantes e foi correspondida. A fazendeira, cheia de rancor, considerou a
cena um desrespeito. Então, mandou quebrar todos os dentes da escrava. Em
seguida, mandou pendurá-la pelas orelhas no pelourinho – e ela lá ficou,
os pregos se misturando com o sangue, a dor sendo traduzida em gritos e desejo
de morrer.
No folclore regional, há outras narrativas, mais leves, menos amargas, e que envolvem maridos traídos, aventuras na “zona”, corridas de cavalos, golpistas, episódios de tolice política, bêbados, muitos bêbados. Há diversão para todos os gostos. Para quem gosta de “histórias baseadas na vida real”, os inúmeros episódios protagonizados por figuras pitorescas como Beto Louco, Nereu Goss, Luiz Alfredo Ribeiro e outros tantos não devem ser esquecidos. São peripécias que ainda estão para ser contadas em detalhes. Cada um desses personagens vale um livro!
Olhando para o passado, pensando no poder do imaginário e em quem gosta de ouvir uma boa história, cabe-me dizer que as narrativas que recordo com mais nitidez, com brilho nos olhos, foram contados em volta do fogão de lenha, em noites de inverno. As sombras projetadas pelas labaredas e pelo lampião de querosene sempre me pareceram mais eficazes do que cenários teatrais. E esses relatos, que cobrem um vasto leque de emoções, transitam entre assombrações, golpes do destino e desilusões amorosas. Juro que acredito em todos, inclusive naqueles em que fantasmas e/ou peixes de trezentos quilos são os personagens principais.
(continuo em outra hora)
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